sexta-feira, 19 de abril de 2024

Sem Notícias de Deus


 Há algo de angelical na beleza amadurecida e melancólica de Victoria April; em contrapartida, há algo de diabólico na sensualidade à flor da pele e na juventude vulcânica de Penelope Cruz, e esse acerto na escalação de duas atrizes em estado de graça, donas de carisma incomum no cenário cinematográfico mundial, para interpretar personagens assim antagônicas e a um só tempo complementares, é pois o elemento em torno do qual se constrói “Sem Notícias de Deus”, do diretor Augustín Diaz Yanes –a razão, por assim dizer, para que tal projeto exista. Não deixa de ser um procedimento um tanto batido que o cinema espanhol parece decalcar do cinema norte-americano: Reunir em cena dois grandes nomes de forte apelo junto ao público a fim de atrair expectadores para o filme.

Sua trama, num gesto de audácia autoral, cutuca diretamente preceitos religiosos para deles extrair uma certa graça –que nem sempre se revela ferina de fato –o Inferno (no qual seus membros condenados falam sempre em inglês!) envia para a Terra a intempestiva e sensual Carmem (Penelope Cruz), enquanto que o Céu (um ambiente preto & branco vintage onde a língua predominante é o francês!) envia a sensata e bem-intencionada Lola (Victoria April). A razão é o salvamento da alma do boxeador Manny (Demián Bichir): O Céu e o Inferno resolveram disputar a sua alma simbolicamente numa queda de braço onde decidirão se o Céu prossegue com sua carência cada vez maior e mais alarmante de almas benevolentes e o Inferno, com as condições precárias e impraticáveis para a superlotação que, nos últimos tempos, o assolou.

Encarnada na esposa de Manny, Lola tem considerável vantagem nessa disputa, mas Carmem pode apelar para as escapadelas e desvios morais que vez ou outra o suscetível Manny comete –e são inúmeros: Inclusive envolvendo o perigo da criminalidade, algo que, em dado momento, ameaça atingir as duas enviadas do além, obrigando-as a fazer algo que não queriam e nem imaginavam: Unir forças.

Longe de emular Pedro Almodóvar –a primeira referência que vem a mente ao vermos Victoria April e Penelope Cruz no filme –embora hajam traços do cinema latino, sobretudo, na abordagem algo debochada da religiosidade, o trabalho de Diaz Yanes, datado de 2001, é, do início ao fim, assombrado por Quentin Tarantino: A abertura é totalmente inspirada em “Pulp Fiction”, e a condução de seu enredo prima por uma manutenção de diálogos abastecidos de um sarcasmo mesclado à inusitado senso de observação, tudo isso, mais a ênfase já nem tanto original na criminalidade urbana remete muito ao diretor de “Cães de Aluguel”. Entretanto, não é somente Tarantino quem parece orientar as inspirações de Diaz Yanes; também o filme alemão “Corra Lola Corra”, dirigido por Tom Tykwer, de 1998, é talvez sua mais inescapável fonte, na repetição dos nomes dos protagonistas –Lola, a personagem feminina principal (lá interpretada por Franka Potente), e Manny (vivido naquele filme por Moritz Bleibtreu) o personagem masculino principal –e na premissa onde uma mulher (ou duas, como aqui) se propõe a toda uma jornada de exaspero físico e significado metafísico a fim de garantir a redenção de um homem.

Essas escolhas parecem afastar “Sem Notícias de Deus” de uma maior identificação dentro do cinema espanhol ao qual pertence, aproximando-o mais de elementos em voga no cinema hollywoodiano ao qual sua intriga central (o embate meio destrambelhado e ambíguo no fim das contas entre o Bem e o Mal) busca, pelo jeito, parodiar.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Morte No Nilo


 Não deixa de ser admirável que, entre franquias milionárias de superheróis que dão certo ou não, e criações mirabolantes e fantasiosas afins, o diretor e astro Kenneth Branagh tenha sido capaz de emplacar, nesses tempos atuais de pirotecnia, uma espécie de franquia focada na astúcia do roteiro, na excelência das interpretações e no amparo de adaptações literárias de obras da autora Agatha Christie que estão por aí desde muito tempo. Tudo começou com a versão repaginada, remodelada e modernizada (isso em termos de virtuosismo narrativo) de “Assassinato No Expresso do Oriente”, prosseguindo com este “Morte No Nilo” que dá uma continuidade sutil àqueles eventos.

A verdade é que “Morte No Nilo”, o livro de Agatha Christie, já havia sido outrora adaptado para cinema; numa produção de 1978 estrelada por Peter Ustinov (em substituição à Albert Finney, que viveu Hercule Poirot na primeira versão de “Assassinato No Expresso Oriente”) e dirigida por John Guilhermin. Carente de recursos, de fôlego limitado e dirigido sem maiores inspirações, era um filme mediano que pouco conseguia evidenciar qualquer brilhantismo que o texto literário por ventura pudesse ter –e apesar disso tudo, ainda rendeu uma continuação, “Assassinato Num Dia de Sol”, de 1982, também estrelada por Ustinov.

Este novo “Morte No Nilo” começa numa cena em preto & branco, durante a Primeira Guerra Mundial, onde a narrativa trata de explicar a origem... do bigodão de Hercule Poirot (!), então um jovem soldado almejando ser fazendeiro, mas dotado de genial mente dedutiva. Salta para o ano de 1937 e o agora renomado detetive Hercule Poirot, após o que parece ser a solução de um caso em pleno Egito, busca dar continuidade às suas férias. Todavia, os contratempos não cessarão: Logo, ele reencontra o amigo Bouc (Tom Bateman), o mesmo que lhe providenciara a carona no Expresso do Oriente no filme anterior.

Ao reencontrar Bouc, junto de sua intratável mãe (Annete Bening), Poirot reencontra também as circunstâncias que, mais uma vez, tornam a exigir dele sua apurada perspicácia detetivesca. Desta vez, a trama gira em torno de um casal em lua-de-mel que monopoliza as intrigas dos personagens: A ricaça Lynnete Ridgeway (Gal Gadot) e seu marido um tanto oportunista, Simon Doyle (Armie Hammer); sendo que eles foram apresentados, um ao outro, pela amiga de Lynnete, Jackie de Bellefort (Emma Mackey, de “Barbie”), então namorada de Simon.

Uma vez casados, Lynnete e Simon recolhem seus amigos e conhecidos no luxuoso cruzeiro Karnak, a fim de descer as águas do Nilo, entretanto, cada convidado tem uma razão para desejar o mal do casal: Seja o médico, Dr. Windlesham (Russell Brand), ainda apaixonado por Lynnete e visivelmente contrariado com o recente casamento dela; seja sua tia Marie Van Schuyler , cheia de segredos, inclusive aqueles envolvendo sua enfermeira e acompanhante Mrs. Bowers (Jennifer Saunders e Dawn French, criadoras da série britânica de comédia “French & Saunders”); ou o primo distante, o indiano Andrew Katchadorian (Ali Fazal), a empregada Louise Bourget (Rose Leslie), cheia de segundas intenções, e até mesmo a dupla contratada para animar a viagem, a cantora Salomé Otterbourne (Sophie Okonedo, de “Coisas Belas e Sujas”) e sua filha Rosalie (Letitia Wright, de “Pantera Negra-Wakanda Para Sempre”), esta por sua vez enamorada por Bouc; e ainda por cima, o aparecimento na embarcação da própria Jackie! Assim sendo, quando alguém aparece assassinado, sobram suspeitos para o detetive Poirot investigar, e as circunstâncias em que se deu o crime são de tal forma melindrosas e complexas que somente uma mente privilegiada como a dele é, de fato, capaz de encontrar um fio da meada e descobrir a verdade por trás de tudo.

A fórmula de “Morte No Nilo” segue a mesma de “Assassinato...”, um crime (aqui, levando um tempo mais considerável para se suceder) deflagra a investigação e todos os personagens, sem exceção, possuem segredos a ocultar uns dos outros, desafiando o intelecto à toda prova de Poirot, contudo, diferente da situação de confinação engendrada em “Assassinato...”, aqui a direção de fotografia de Haris Zambarioukos explora com avidez visual e entusiasmo técnico todas as possibilidades paisagísticas oferecidas por recursos de última geração e efeitos digitais que permitem transformar cada frame numa pintura.

Há também um teor trágico mais ressaltado neste trabalho do que no anterior, fruto de uma tentativa de aprofundamento maior no âmago psicológico do normalmente impassível Hercule Poirot, ainda assim, apesar da boa direção de atores exercida por Kenneth Branagh, do ritmo intenso (e, ao fim, bastante exaustivo) e do exorbitante visual de cartão postal que ele imprime do início ao fim, as várias facetas de “Morte No Nilo” não conseguem se harmonizar por completo, gerando um trabalho que, ao oscilar entre suas qualidades e seus lapsos, acaba soando como um entretenimento esquizofrênico.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

O Casamento do Meu Melhor Amigo


 Ainda na década de 1990, a carreira da estrela Julia Roberts, então a rainha das comédias românticas da época, havia estagnado –filmes insossos e repetitivos, e tentativas pouco eficazes de fazer cinema sério, começavam a fazer o público se cansar de sua bela imagem. Foi então que o diretor australiano P.J. Hogan (realizador da pérola “O Casamento de Muriel”) conseguiu revitalizar seu estrelado ao escalar Julia para o papel principal neste pequeno conto de comicidade e engenhosidade onde –pasmem –ela faz o papel de vilã (!). O roteiro, assinado por Ronald Bass (roteirista de “O Clube da Felicidade e da Sorte” e “Rain Man”), é segundo ele próprio inspirado numa ideia que teve ao presenciar uma linda e espetacular cerimônia de casamento de amigos pessoais: Ele imaginou uma personagem disposta a estragar todo aquele evento estupendo!

Para que tal premissa, a um só tempo graciosa e ferina, funcionasse, o diretor Hogan lançou mão de elementos notáveis e surpreendentes que fogem do conceito de uma mera comédia romântica (embora, em sua simplicidade, esta produção seja uma) e agregam características de cinema de verdade –e a primeira delas é seu elenco: Na personagem de Julianne Potter, uma crítica gastronômica ciente de que está numa idade onde já deveria ter achado o homem de sua vida, Julia Roberts revela-se perfeita, engraçada e vulnerável; um equilíbrio preciso entre a ternura de outras personagens que ela já interpretou e uma predisposição para cometer estratagemas e intrigas mesquinhos que, por incrível que pareça, não fazem o público detestá-la. Também está perfeito Dermot Mulroney como Michael, o melhor amigo de Julianne e aquele a quem ela começa a enxerga, um pouco tardiamente, como a pessoa que pode, sim, ser o homem de sua vida. Tardiamente, porque Michael entra em contato com ela justamente para que seja madrinha de seu casamento iminente com a doce Kimberly (a maravilhosa Cameron Diaz, ainda uma revelação no cinema tendo feito “O Máskara” três anos antes).  Contudo, ninguém desse pessoal rouba mais a cena deste filme do que George, o charmoso, sensato e ocasionalmente perplexo amigo homossexual de Julianne (interpretado de maneira sensacional por Rupert Everett) que, lá pelas tantas, acaba tendo que fingir ser namorado dela (!). Afinal, Julianne aceita o convite do casamento entre Michael e Kimberly disposta a estar por perto durante todos os eventos que antecedem as celebrações e aproveitar a oportunidade para elaborar todos os planos possíveis para acabar com a cerimônia, certa de que é ela quem pode fazer Michael feliz.

A fim de adornar com um certo alto-astral a vilania que pontua muita da narrativa e das ações tomadas pela protagonista, o diretor Hogan se vale de um repertório esfuziante de músicas de Dionne Warwick (em especial, “I Say A Little Prayer” cantada numa cena antológica) tal e qual ele fez em “O Casamento de Muriel”, com músicas do ABBA.

domingo, 7 de abril de 2024

10 Histórias em Quadrinhos que poderiam render grandes filmes - Parte 2


 Fun Home-Uma Tragicomédia Em Quadrinhos –As recordações um tanto dolorosas da quadrinista Alison Bechdel que cresceu numa família disfuncional onde seu próprio pai, Bruce Bechdel, era professor e homossexual enrustido. Centralizando a figura dele numa trama que oscila entre o humor e o drama, Bechdel reflete a descoberta de sua própria homossexualidade anos depois, numa trama construída de primor, personalidade e detalhes preciosos.

Em 2014, a narrativa de “Fun Home” foi convertida em uma peça musical na Broadway, recebendo fartos elogios, não muito tempo depois, foi noticiado que o astro Jake Gyllenhaal havia acertado para ser produtor e protagonista (no papel de Bruce) de uma adaptação cinematográfica –quem sabe um filme de “Fun Home” não esteja próximo?


Sgt. Rock –
Personagem extremamente realista, inserido num contexto também ele realista, o Sgt. Rock comanda um destacamento de soldados numa fria e inóspita missão na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. O roteiro e os desenhos de Joe Kubert, responsável pela icônica graphic-novel “A Profecia”, com esse personagem, transformam o que tinha tudo para ser uma trama genérica num envolvente e brilhante drama de suspense, perfeita para ser traduzida numa versão cinematográfica.


A Casta dos Metabarões –
O diretor, escritor, poeta, dramaturgo e exotérico (!) Alejandro Jodorowsky demorou a se livrar do fantasma de “Duna”, a superprodução que planejou e jamais realizou. Dentre as obras que acabaram sendo realizadas com ideias inicialmente concebidas para “Duna”, Jodorowsky escreveu a HQ “O Incal”, até hoje uma das mais prestigiadas do segmento, e este derivado, “A Casta dos Metabarões”, focado num personagem secundário, mas, infinitamente fascinante que surge naquela trama. Num enredo épico, nos mais diversos sentidos, o texto complexo, simbolista e audacioso de Jodorowsky conta a história de várias gerações dos Metabarões e sua relação com outras casas de nobreza da galáxia a medida que se envolvem em guerras nas estrelas que não têm absolutamente nada da ingenuidade de George Lucas.


Nascido No Campo de Batalha –
Depois que os direitos autorais do personagem Conan, O Bárbaro foram para a editora Dark Horse (isso depois de pertencerem à Marvel Comics décadas antes), muitos dos clássicos contos de Robert E. Howard com esse personagem ganharam nova roupagem, porém, uma história de origem nunca havia sido devidamente contada, até o renomado roteirista Kurt Busiek arregaçar as mangas. Mesmo os filmes já realizados para cinema não chegavam a esboçar esse aspecto do personagem –o “Conan” de 1982, com Arnold Schwarzenegger, porque se diferenciava muito dos contos de Howard, e o “Conan” de 2011, com Jason Momoa, porque era, deveras, uma catástrofe! –sendo assim, Busiek e o artista Greg Ruth, com base em inúmeros elementos, menções, referências e pistas deixadas pelo próprio Robert E. Howard compuseram uma perfeita e incontestável (além de emocionante) história de origem que merece ser adaptada tão logo algum estúdio resolva levar novamente esse grande personagem para o cinema.


Ranxerox –
Uma das mais curiosas e pulsantes histórias em quadrinhos já concebidas, “Ranxerox”, do italiano Stefano Tamburini pegava carona na atitude raivosa do Movimento Punk dos anos 1980 para moldar um mundo escatológico, sensual e satírico de ficção científica. Alguns podem alegar que “Ranxerox” já ganhou uma espécie de adaptação cinematográfica: Muito se alardeou que “O Profissional”, de Luc Besson, era uma adaptação disfarçada de “Ranxerox”, contudo, trata-se de uma obra que, queira ou não, carecia de respaldo oficial dos criadores e também (por isso mesmo) modificava inúmeros aspectos da premissa e dos personagens –e os fãs de quadrinhos sempre querem fidelidade absoluta!

Dessa forma, seria sensacional ter, por exemplo, Ron Perlman (isso enquanto ele ainda tem idade, claro) interpretando o personagem principal, Ranxerox, um ciborgue de baixo custo num futuro caótico que procura servir às maluquices e caprichos de Lubna, uma ninfeta endiabrada.


Liberty Meadows –
Desenhar belas mulheres é uma especialidade do ilustrador Frank Cho, entretanto, ele quis provar, com a graphic novel “Liberty Meadows” que seu talento ia muito além disso. Embora seja protagonizado por uma veterinária extremamente deliciosa (a encantadora Brandy), a trama de “Liberty Meadows” foca mesmo no humor e na alegoria da crítica social ao trazer personagens que são bichinhos fofinhos –e lembram até alguns personagens da Disney num primeiro momento –mas que surgem assolados pelos mais variados vícios e neuroses muito humanos como a hipocondria, a ansiedade e o stress cotidiano.

E antes que você me pergunte se teria como fazer um longa-metragem real com tantos personagens animais, fique sabendo que isso não é nenhuma novidade, visto os avanços no campo da computação gráfica o que permitiu a realização de filmes como “Sonic” ou o live-action de “O Rei Leão".


Habibi –
Embora seja magistral, “Retalhos” –do qual eu falei na lista anterior –não é a obra-prima do escritor e ilustrador Craig Thompson; essa honra, por incrível que possa parecer, cabe ao seu trabalho seguinte, este arrebatador, doloroso e genial “Habibi”.

Um épico avassalador e distinto que acompanha as trajetórias ora paralelas, ora cruzadas, da jovem Dodola e do garoto Zam, ambos órfãos numa inclemente sociedade do Oriente Médio. Oscilando entre os estágios de tempo em que a história de amor entre eles se desdobra –a fuga da vida de escravos, ainda quando eram crianças; o amadurecimento, quase lúdico, isolados num deserto, quando os primeiros choques com a dura realidade da vida começam a assombrar suas vidas; a separação e as reviravoltas imprevisíveis e inacreditáveis que ameaçam afastá-los para todo o sempre; e lá pelas tantas, uma improvável chance de reencontro –estão as histórias que Dodola, uma contadora de histórias nata, vai relatando e que transformam “Habibi” num monumento dos quadrinhos.

Até hoje nenhuma obra de Craig Thompson –nem mesmo o primordial “Retalhos” –foi adaptada para cinema. Certamente, “Habibi” com sua trama fortíssima de denúncia dos abusos sociais a que mulheres, crianças e pobres são submetidos em sociedades mais retrógradas renderia um trabalho que suscitaria muitos debates nas redes sociais de hoje.


Verão Índio –
Muito apreciado, sobretudo nos nichos de quadrinhos eróticos, o italiano Milo Manara foi um dos poucos que conseguiu vencer essa barreira graças à qualidade inconteste de sua arte –ele chegou até mesmo a desenhar uma revista dos “X-Men”! Para muitos, seu trabalho mais adulto e despido da pornografia redundante que fez sua fama (embora haja, sim, algum resquício de erotismo) é “Verão Índio” que mergulha principalmente na colonização européia das indomadas pradarias norte-americanas quando ainda eram de domínio de irredutíveis tribos nativas. A trama poderia até lembrar um faroeste dos anos 1940, mas Milo Manara e seu roteirista Hugo Pratt (criador do clássico “Corto Maltese”) proporcionam uma desmistificadora visão européia à esses elementos, transformando “Verão Índio” numa obra singular.


Camelot 3000 –
Uma das mais brilhantes sagas de quadrinhos dos anos 1980, “Camelot 3000” foi escrita por Mike W. Barr e desenhada por Brian Bolland (o mesmo de “Batman-A Piada Mortal”), autores ingleses que sabiam muito bem o que estavam fazendo quando retomaram a história da Lenda do Rei Arthur levando ele e todo seu séquito de lendários personagens coadjuvantes (o mago Merlin, o cavaleiro Lancelot, a rainha Guinevere e outros) a despertar em pleno Século XXI a fim de deter uma invasão alienígena ao planeta Terra comandada pela própria feiticeira Morgana Le Fay.

Desde o filmaço “Excalibur”, de John Boorman, também da década de 1980, nenhum diretor ou estúdio foi capaz de recontar com pompa e circunstância (e qualidade) a Lenda do Rei Arthur novamente, quem sabe não seja hora de alguém perceber o enorme potencial cinematográfico desta HQ?


Hard Boiled-À Queima Roupa –
Houve um tempo em que Frank Miller (assim como Alan Moore) era um autor incansável, criando uma obra memorável atrás da outra em ritmo de pasteleiro (!). Concebido no início dos anos 1990, “Hard Boiled” era uma ficção científica anárquica, similar ao que já vinha sendo feito nas página da audaciosa revista “Heavy Metal”, sua premissa se desenrolava na mente de Carl Seltz (personagem cuja aparência faz lembrar Daniel Graig), marido e pai exemplar no ano de 2029 (está quase perto...); ou seria na mente de Nixon, um cobrador às voltas com implantes de memória em seu cérebro que podem, ou não, serem responsáveis pelo surto homicida no qual ele converteu a cidade em um matadouro; ou mais, seria no banco de memória da Unidade Quatro, o mais avançado modelo de robô já feito, tão avançado que poderia ostentar simulações de lembranças humanas –ou seria, isso tudo, também um implante de memória do próprio Nixon? Ou do próprio Carl? Aliás, não seriam eles e Unidade Quatro um mesmo indivíduo cibernético?

Pegando carona no ebuliente gênero cyberpunk que havia tomada de assalto a literatura na década anterior, e antecipando muitas ousadias narrativas que os quadrinhos só viriam a assimilar anos mais tarde, Miller constrói uma sucessão de cenas de ação raivosas, surreais e inacreditáveis, cortesia da identidade visual singular do ilustrador Geof Darrow. Em 2007, em meio ao sucesso de “300”, “Hard Boiled” foi uma das inúmeras obras de Miller cogitadas para uma adaptação para cinemas, certamente, os realizadores logo esbarraram na complexidade incontornável de seu argumento.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Godzilla Minus One


 Merecidíssimo vencedor do Oscar 2024 de Melhores Efeitos Visuais, o épico japonês “Godzilla Minus One”, de Takashi Yamazaki, deixa bem claro que os melhores filmes dentro do gênero ou categoria a que se propõem são sempre realizados por quem deles tem maior conhecimento: A despeito do relativo sucesso e do ocasional divertimento proporcionado por produções como “Godzilla”, “Godzilla-Rei dos Monstros” e “Godzilla Vs Kong” –apropriações inevitavelmente norte-americanas do kaiju (monstro) culturalmente oriundo do Japão –é pelas mãos dos estetas japoneses e por sua compreensão do conceito original do personagem que um dos melhores filmes de monstros chegou até o público.

Ambientado na década de 1940, num Japão arrasado do pós-guerra, “Minus One” já denota, em sua nada comercial ambientação, as reflexões um tanto inesperadas a que se propõe o mito Godzilla –aliado ao fantasma da Segunda Guerra Mundial, o filme coloca o famoso monstrengo como uma metáfora das terríveis repercussões radioativas vivenciadas pelo cidadão comum e, neste caso específico, um adversário tornado físico e palpável (ainda que em diversos momentos implacável) a representar o temor da derrota.

Quando “Minus One” começa acompanhamos a jornada de vergonha e resignação do piloto kamikase Shikishima (Ryünosuke Kamiki, o garotinho de “A Grande Batalha Yokai”) cuja covardia o impediu de encerrar a própria vida em ação, como ocorrera com seus colegas, mas que, em vez disso, o levou a refugiar-se, com rabo entre as pernas, numa ilhota do Pacífico onde reparavam aviões. A mesma ilha que, horas mais tarde, é devastada pela aparição de um ser de dimensões pré-históricas.

Os aldeões locais o chamam de Godzilla –e assim, sem maiores preocupações em estabelecer origens e explicações que pouco influenciam na narrativa, o filme de Yamazaki coloca seu monstruoso antagonista em cena, deixando que as próprias considerações de cada expectador estabeleça os paralelos de alegorias, razões, objetivos ou significados (ou nada disso), materializando-o num designer que une o classicismo retrô do Godzilla original da Toho Studios com uma anatomia visualmente sofisticada possibilitada pelos efeitos especiais de última geração.

Escapando quase milagrosamente com vida, Shikishima volta para o continente onde encontra a cidade de sua família (assim como boa parte do país) destruída pela guerra, e agora diante de uma ainda vã esperança de reconstrução. Junto de uma jovem, Noriko (Minami Hamabe), que adotou um bebê orfão, ele reergue a casa onde seus pais moraram –convertida num barraco de favela –e passa a trabalhar num pequeno barco de madeira cuja tripulação ganha a vida encontrando e desativando minas marítimas.

Alguns anos se passam, enquanto Shikishima, Noriko e a criança acabam se tornando uma família, mas dois elementos nunca deixam de assombrar Shikishima: Um; a sua falha como kamikase, um detalhe que ele, envergonhado, luta para omitir de todos os que se aproximam dele; e o outro, a visão sempre ameaçadora do assustador Godzilla.

De certa maneira –e com insuspeita perícia da parte de seu roteiro –são esses dois tormentos que retornam, um atrelado ao outro, para colocar Shikishima e sua ombridade à prova mais uma vez: Sem que o Japão tenha qualquer auxílio bélico dos EUA (impedido por uma série de entraves políticos com os soviéticos), a criatura Godzilla emerge novamente do fundo do Oceano Pacífico, desta vez, ainda mais crescida depois de todos os anos transcorridos, e ruma para o arquipélago do Japão, disposto a transformar as suas cidades costeiras em pó.

Para a população japonesa, e suas cidades submetidas à terrível provação da Segunda Guerra Mundial, a chegada de Godzilla é mais do que uma simples calamidade –é uma catástrofe que vem somar-se a outra ainda não superada; uma tragédia por meio da qual o país, cujas circunstâncias já o tinham levado à estaca zero, foi colocado ao nível menos um (‘minus one’). Já, para Shikishima, e o carismático grupo de coadjuvantes que o cercam, todos empenhados num plano de contingência para aplacar o implacável Godzilla, a aparição do monstro reflete a oportunidade para trilhar um novo caminho de redenção, onde está em jogo a possibilidade de, uma vez mais, ele sacrificar-se por aqueles que ama.

Brilhantemente realizado, dirigido, concebido e interpretado, “Minus One” surpreende o expectador por adotar uma trama que, mesmo nos momentos em que não se concentra na sua estrela principal (o monstro gigantesco destruidor de prédios) ainda assim consegue impressionar, envolver e satisfazer –inclusive lançando mão de uma contundente reflexão sobre o código moral dos kamikases em oposição ao conceito do valor à vida –entretanto, é quando entra em cena sua maior atração e as cenas de destruição que, por definição, ele protagoniza é que “Minus One” diz, de fato, a quê veio: O filme de Yamazaki, com suas sequências primorosas de destruição em larga escala (feitas, dizem, com baixo orçamento!) conseguem simplesmente colocar no bolso todas as produções já feitas até hoje a envolver o lagartão Godzilla, incluindo aí as endinheiradas e ostensivas realizações norte-americanas.

terça-feira, 2 de abril de 2024

Danzón - Meu Amor Perdido


 Há algo de “Sob O Sol da Toscana” (de Audrey Wells, estrelado por Diane Lane) neste semi-clássico cult “Danzón”, dirigido por Maria Novarro: Ambos expõem, em seu enredo e em suas minúcias, as dificuldades existenciais para uma mulher balzaquiana tentar um recomeço de vida, ainda que um otimismo predominante e uma ternura bem humorada deem o tom.

Pérola do cinema mexicano dos anos 1990. “Danzón” traz o despojamento na rodagem em película de suas imagens e nas atitudes cafajestes flagradas pelos transeuntes (que assediam desavergonhadamente a protagonista pelas ruas), num comportamento que causa um certo contraste com a forma de postura masculina empregada e aceita hoje: certamente, se um filme assim fosse realizado nos tempos atuais ele se posicionaria de maneira muito mais contestadora (e em última instância, repreensiva) em relação ao ato corriqueiro de mexer com uma mulher na rua –todavia, naqueles anos 1990 de então, o filme (dirigido por uma mulher, veja bem!) adota um olhar até mesmo romantizado para tal flerte!

A telefonista Julia Solórzano (a extraordinária María Rojo, do corrosivo “A Ditadura Perfeita”) vive sua vida em função de seu trabalho e de sua filha adolescente na Cidade do México. Sua única válvula de escape é o Salón Colonia, um clube que ela frequenta religiosamente todas as quartas-feiras, onde ela extravasa essas frustrações da vida de mulher moderna dançando danzón, um ritmo de música cubana. Há anos, seu parceiro de dança (e nada mais, visto que mal se conhecem...) é o desprendido Carmelo (Daniel Rergis) que, para surpresa de Julia, desaparece numa certa noite.

Uma vez sem o protagonista de seus extravasamentos, Julia se dá conta de que é incapaz de livrar-se do stress e do desgaste, e com isso, toma a decisão de descobrir o paradeiro de Carmelo que, dizem, partiu para Vera Cruz, por sua vez à procura de um irmão perdido. Indo para Vera Cruz, Julia se hospeda numa pensão gerenciada por Dona Ti (Carmen Salinas, de “Chamas da Vingança”) onde conhece o travesti Suzy (Tito vasconcelos, de “Sem Tom Nem Sônia”) e vivencia uma série de circunstâncias nas quais, pouco a pouco, se dá conta que sua viagem não é uma jornada para reencontrar Carmelo, mas sim uma jornada de auto-descoberta onde ela reencontra a si mesma.

A diretora Maria Novarro rodou “Danzón” em 1989, lançando-o somente em 1991. Sua obra é um marco no cinema mexicano e na representação feminina em frente e atrás das câmeras –está entre os primeiros trabalhos a ser dirigido, escrito e estrelado por mulheres.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Matador de Aluguel


 O cult-movie “Donnie Darko” foi o primeiro filme de Jake Gyllenhaal e o último de Patrick Swayze –é essa coincidência irônica, a entrelaçar os astros do filme original, de 1989, e desta refilmagem, um dos elementos que parece orientar a inspiração do diretor Doug Liman.

Num primeiro momento, tem-se a impressão que o “Matador de Aluguel” original pertence aos anos 1980, e somente nele (e nas circunstâncias sempre inusitadas daquela década) haveria de funcionar; é com um senso irresistível e afiado de escapismo e diversão que Doug Liman se vale para contrariar essa ideia. Este seu “Road House” –o título original –é tão vibrante, viril e memorável quanto o clássico estrelado por Swayze, e essa afirmação, no cinema de hoje, povoado por refilmagens e reboots incapazes de ombrear a criatividade de seus exemplares originais, é quase a constatação de um milagre!

Ex-lutador de UFC –a modalidade de luta do momento –o outsider Elwood Dalton (Gyllenhaal, no personagem que, aqui, enfim recebe nome e sobrenome) vive de brigas clandestinas em bares norte-americanos, em grande medida, beneficiando-se de sua má fama (no passado, ele esmurrou um adversário até a morte!) para intimidar oponentes. Contudo, de alguma forma, isso impressiona a jovem Frankie (Jessica Williams, de “Animais Fantásticos-Os Crimes de Grindelwald”) que o contrata como segurança para botar ordem no bar que ela herdou de seu tio. Localizado na Flórida, na cidadezinha de Glass Key, o bar se chama “A Taberna” e monopoliza a atividade social noturna da região, atraindo também os desordeiros mais violentos.

Logo, Dalton começa a colocar as coisas em seus devidos lugares –mais uma vez, se valendo da fama que seu nome precede –no entanto, ele compreende que as arruaças e agressividades ocorridas no bar de Frankie não são meros contratempos; há alguém interessado em tornar a manutenção daquele estabelecimento um inferno até que seja vendido ou fechado, e esse alguém é o milionário e filho de papai –e vilãozinho da vez –Ben Brandt (Billy Magnussen, de “Twelve-Vidas Sem Rumo” e “007-Sem Tempo Para Morrer"), cujos negócios ilícitos com tráfico de drogas terão especial rendimento se ele dispuser de controle sobre o terreno onde se acha a “Taverna”.

Assim, sem mudar muito as circunstâncias que faziam da trama de “Road House” uma aventura oitentista tão prazerosa, o diretor Doug Liman altera pequenos elementos, acrescenta uma pitada de drama ali, um pouco de mistério bem administrado ali, e transfere a história para a atualidade –na qual ela perde muito daquela aura de maluquice aventuresca dos anos 1980 –fazendo uma produção que transborda tanta alta voltagem e desperta tanto interesse quando o filme original.

Para isso, muito ajuda a presença serena e sólida de Jake Gyllenhaal, um ator cuja convicção em cena ajuda a dissipar o fato de que seu personagem ostenta uma confiança sob pressão por vezes inverossímil –além do background dado ao personagem torná-lo mais crível e humano –e, se o protagonista ganha camadas interessantes, os antagonistas também: Billy Magnussen é um líder de gangue desprezível, detestável, mimado e hilariante, mas seu capanga-mor, o psicótico Knox, é de uma periculosidade palpitante e verdadeira, e seu intérprete, o ex-lutador Conor McGregor, estreia com o pé direito em longa-metragens, entregando uma atuação vulcânica, carismática e exuberante.

No final das contas, é a direção atenciosa e intrépida de Doug Liman (um especialista que entregou obras que vão de “A Identidade Bourne” até “Sr. & Sra. Smith”) que equaciona a diversão deste “Road House” com a do delicioso exemplar oitentista que ele se propõe a recriar, usando de artifícios que poderiam parecer até bastante óbvios (personagens construídos com zelo; atores bem dirigidos; e cenas de ação e pancadaria executadas com perícia e inventividade), mas, continuam sendo de conhecimento de poucos realizadores realmente perspicazes na concepção de um filme simplesmente bom.