terça-feira, 29 de outubro de 2024

Tipos de Gentileza


 O novo projeto do diretor grego Yorgos Lanthimos é uma espécie de retorno aos temas incisivos sobre o desconforto presente em determinados contextos da contraditória condição humana. Depois de dois filmes de época de apelo mais comercial –um, trabalhando uma reconstituição potencializada em cinismo e ironia dos elementos vitorianos e das intrigas de poder (“A Favorita”); o outro, a enfatizar os aspectos mirabolantes do gênero numa reflexão sobre as dissimulações da sociedade (“Pobres Criaturas”) –Yorgos Lanthimos realiza uma obra divida em três episódios que, à sua maneira, dialogam uns com os outros (seja na rima visual proporcionada pelo reaproveitamento deliberado dos mesmos intérpretes em diferentes tipos de personagens ou na estranheza quase gutural que emana de tais enredos) oferecendo inúmeras alternativas de interpretações, a exemplo de obras como “Dente Canino” e “O Sacrifício do Cervo Sagrado”.

Com um viés que lembra “De Olhos Bem Fechados”, o primeiro episódio é “A Morte de R.M.F.”, o que não deixa de ser intrigante, uma vez que quase todos os personagens aqui possuem as iniciais R.M.F. (!). Todavia, não chega a ser um mistério quem irá morrer –será, provavelmente, o homem de meia-idade que aparece dentro de um veículo no qual Robert (Jesse Plemmons, de “Assassinos da Lua das Flores” e “Jungle Cruise”) deve colidir com seu carro, provocando um acidente automobilístico, à mando dos caprichos insustentáveis de seu patrão, o influente, beligerante e irredutível Raymond (Willem Dafoe).

Robert fracassa –a colisão de veículos calculada não chega exatamente a resultar em vítimas fatais –e quando é incentivado por Raymond à esforçar-se para tentar provocar um novo acidente, desta vez, garantindo o óbito do outro motorista, ele se nega. A reação de Raymond à essa decepção é o desmoronamento gradual de todo o modo de vida de Robert –que, então descobrimos, era todo arquitetado, nos mais mínimos detalhes, pelo próprio Raymond: Desde o casamento com sua esposa (Hong Chau, de “A Baleia”) passando pelo fato de não terem filhos ( que o próprio Raymond repudiava, obrigando Robert a fazer sua mulher beber drogas abortivas) até as peças valiosas que integram a decoração de sua casa (peças essas que vão desaparecendo conforme Raymond manifesta vontade de recuperá-las...).

O segundo episódio é “R.M.F. Está Voando”, no qual um policial (mais uma vez Jesse Plemons) padece pela ausência da esposa (Emma Stone) desaparecida num naufrágio. Quando a esposa é encontrada e retorna para casa, ele passa a notar pequenos indícios que, para ele, significam que aquela não é realmente sua mulher, mas sim uma impostora. Entretanto, ela está disposta a tudo para provar a ele sua autenticidade e o seu amor –inclusive a mutilar-se (!) quando ele, para sair da greve de fome em que se submeteu, lhe pede para alimentar-se da carne dela mesma (!!).

No terceiro episódio, “R.M.F. Pede Um Sanduíche”, Emma Stone vive, por sua vez, Emily, uma mulher integrante de uma seita bizarra onde os membros fazem sexo promíscuo somente entre si (!) e não bebem nenhum líquido exceto as lágrimas (!!) de seus sacerdotes (vividos por Willem Dafoe e Hong Chau). Eles têm uma missão: Encontrar uma mulher milagrosa que obedece à certas características específicas –tem uma altura e um peso bem determinados, e possui uma irmã gêmea morta. Na cena que abre o episódio, Emily e o personagem de Jesse Plemons acreditam que essa escolhida possa ser a personagem de Hunter Schafer (de “Euphoria”), mas logo a descartam. Durante a sua busca –na qual inclusive negligencia a família, formada pelo marido e pela filha pequena –Emily passa a acreditar que a escolhida possa ser a personagem vivida por Margaret Qualley. Ela, afinal, preenche todos os requisitos, só tem um porém: Sua irmã gêmea ainda está viva.

Em cada um dos segmentos, Yorgos Lanthimos busca reforçar, por meio de distintas circunstâncias, a predisposição doentia com que o ser humano se submete à situações tão insólitas quanto perturbadoras para aplacar sua necessidade de aceitação, em especial, com relação às figuras de poder. Essa mensagem, carregada de ambiguidade, humor negro e um pessimismo corrosivo no que diz respeito ao ser humano, é exposta em três diferentes âmbitos: O profissional (no primeiro episódio), o matrimonial (no segundo) e o religioso (no terceiro).

É necessário que o expectador tenha um conhecimento prévio das inquietações que definem o cinema de Yorgos Lanthimos (e com elas estabeleça certa cumplicidade) para adentrar esta obra sem ressentir-se com sua narrativa incômoda, hábil no registro contundente do desconforto, da dor e da neurose diária que consome o ser humano.

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