domingo, 3 de novembro de 2024

Lee


 O cinema até que demorou para fazer jus à Elizabeth ‘Lee’ Miller, conhecida como a primeira mulher fotojornalista de guerra que cobriu eventos importantes e brutais durante a Segunda Guerra Mundial. O filme dirigido pela outrora diretora de fotografia Ellen Kuras (de “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”) levou cerca de oito anos para ser realizado –sua pré-produção data de 2015 e seu lançamento oficial, no Festival de Toronto, deu-se em 2023 –e só viu à luz do dia graças à obstinação da estrela Kate Winslet, que abraçou o projeto a ponto de atuar como produtora e, num determinado ponto das filmagens, bancar com seu próprio salário o cachê de seus colegas de elenco!

“Lee” consolida sua biografia a partir de uma cena aparentemente convencional de diálogo: Alguém que parece ser um simples jornalista (Josh O’Connor, da série “The Crown”) entrevista uma já idosa Lee Miller (Kate Winslet, aqui maquiada) no ano de 1977. Todavia, apesar das ressalvas da entrevistada em se abrir, logo seu relato regressa para 1938, quando as memórias de uma jovem Lee Miller (uma presença que a brilhante Kate Winslet torna fulgurante) dão início à sua trajetória de fato. Ao lado de grandes amigos franceses –entre eles, Solange d’ Ayen interpretada por Marion Cottilard, numa participação de luxo –Lee, já em vias de abandonar a carreira de modelo, conhece, na Riviera, aquele que virá a ser seu marido, Roland Penrose (Alexander Skarsgard, de “A Lenda de Tarzan”). Ali, todos também tomam conhecimento da ascensão de Hitler e do nazismo na Alemanha, então observado por eles apenas como uma inusitada escalada ao poder de uma figura desagradável e de ideais um tanto absurdos. Como a própria Lee afirma em sua narrativa em off, de uma hora para outra, aquele ditador estranhamente ameaçador e caricato se transformou no homem mais poderoso da Europa.

Quando eclode a Segunda Guerra Mundial, a Inglaterra, onde ela e Roland moravam, se torna o único país seguro das tropas nazistas. Enquanto Roland, com sua veia artística, auxiliava os esforços de guerra criando camuflagens para a frente de batalha, Lee ajudava como fotógrafa no segmento britânico da prestigiada revista Vogue –auxiliada pela amizade com Audrey Withers (Andrea Riseborough, de “Birdman”, numa personagem espantosamente envelhecida), editora da publicação, que já lutava contra as inevitáveis redundâncias do machismo. Para Lee, contudo, isso não bastava. Ela queria ir para a frente de batalha (onde o próprio Roland chegou a ir diversas vezes) e ter a oportunidade de registrar em primeira mão os assombros da guerra em fotos, entretanto, os ingleses não permitiam a ida de uma mulher para o front. Foi graças à sugestão do grande amigo David Scherman (Andy Samberg, de “Amizade Colorida”) –um personagem que se torna crucial à trama de um ponto em diante –que Lee se dá conta de que, como norte-americana, ela pode ir para a frente de batalha por meio das diretrizes do exército norte-americano, um tanto mais maleável e razoável do que o sisudo exército britânico. É assim que, apesar de um ou de outro contratempo a servir de obstáculo, Lee fotografa primeiro as aflições experimentadas pelos feridos nos hospitais de campanha e, depois, acaba enviada para a Alemanha, em incursões ofensivas nas cidades sob ataque (sequências de batalhas que não predominam tanto assim no filme quanto se pode imaginar), nas descobertas desconcertantes dos primeiros campos de concentração e suas hordas intermináveis de vítimas e na chegada, junto às primeiras tropas, à Berlim ocupada –inclusive flagrando os cadáveres da alta cúpula nazista junto de suas famílias pouco após seu suicídio.

A trajetória de Lee Miller é pontuada por relevância e um pertinente exemplo de empoderamento, uma vez que essa personagem esteve presente em eventos fundamentais do Século XX, contudo, o fôlego da diretora Ellen Kuras se mostra limitado para o filme abrangente, exuberante e importante que ela se prestou a fazer; e para a espetacular trajetória da personagem que se prestou a retratar. Em sua mãos, “Lee” é uma obra dramaticamente inconstante, restrita por um certo cansaço nas poucas e desanimadas cenas de batalha que entrega, e equivocadamente focada em tópicos que não fazem tanta diferença no cômputo geral –como o suposto ‘triângulo amoroso’ entre Lee, Roland e David, sugerido em diversos momentos, nunca porém desenvolvido de fato; ou no igualmente subaproveitado detalhe do jornalista entrevistador do início ser, na verdade, Antony Penrose, o filho de Lee que sentiu-se negligenciado pela sua pouca predisposição materna, o que transforma um filme que poderia ser enérgico, histórico e relevante, num melodrama de ajustes familiares –e também ali surge uma espécie de ‘sugestão’ da parte do roteiro, ao percebermos que o ator Josh O’Connor escalado para interpretar Antony se parece, deliberadamente ou não, muito mais com David do que com Roland.

Apesar dessa constante falha onde a narrativa concentra-se com frequência irritante nos tópicos errados, “Lee” ainda se sobressai à média graças à presença da magnífica Kate Winslet; grande atriz, desde os tempos de juventude na época do mega-sucesso “Titanic”, ela é uma mulher bela, sedutora e audaciosa (suas cenas de nudez são admiráveis) e compõe aqui uma atuação primorosa, rica em autenticidade e vigor, enfatizando Lee Miller como uma grande personagem e valorizando o filme imperfeito que ela protagoniza já que, graças ao Bom Deus, ela é a estrela principal em praticamente todas as cenas.

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