quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Drugstore Cowboy

Quando esta obra de um então iniciante Gus Vant Sant foi lançada em meados de 1989, sua postura incomum pegou público e crítica de surpresa, afinal, era um filme independente –e realizado com técnicas despojadas e senso de acidez de filme independente –mas, cujo resultado final remetia a um registro que se furtava do realismo predominante naqueles trabalhos: Tampouco o olhar de Van Sant parece buscar diretamente um alerta quanto às drogas da forma como pôde ser constatado em trabalhos transgressivos sobre esse tema que vieram depois, como “Trainspotting” (que deve muito de sua estética a esta obra de Van Sant) e “Réquiem Para Um Sonho”.
O interesse de Van Sant está, antes de mais nada, em capturar a euforia, a ligeira falta de perspectiva e os meandros emocionais cheios de possibilidades que aparecem na relação entre dois casais de viciados que juntos formam um grupo a se ocupar de corriqueiros assaltos a drogarias em Portland, no Oregon, em 1970 –é dessa maneira que eles obtêm os medicamentos com os quais se drogam.
Bob, o líder (interpretado por um Matt Dillon meticuloso e sereno), narra sua história em flashback, do leito de uma ambulância. Ele começa detalhando sua rotina ao lado de Dianne, sua namorada (a bela Kelly Lynch), seu amigo Rick (James Le Gros) e a jovem namorada dele, Nadine (Heather Graham, ainda bem novinha). Logo de início, já se pode perceber uma dinâmica problemática no grupo, que Van Sant vai tratar de explorar com espantosa propriedade para um diretor tão jovem. Importa menos a ele os efeitos nocivos do vício (embora eles apareçam irreversíveis a partir da segunda metade do filme) e mais os pequenos pormenores inerentes ao drama humano, que ele evidencia com sua direção desigual –as cenas em que o estado subjetivo de êxtase vivido pelo protagonista se sobrepõe na tela, com delírios acerca de figuras aleatórias, mas principalmente de chapéus (o quê descobriremos mais à frente ser um símbolo de desgraça nos códigos muito particulares dos personagens), são artifícios de narrativa que ganharam o cinema comercial somente mais tarde, nas mãos de Sam Raimi.
Enquanto vivem desses expedientes criminosos, os personagens do filme recebem ocasionais intervenções de personagens a um só tempo arquétipos e ambíguos: David (Max Perlich), um fornecedor de drogas com uns parafusos a menos –e, por isso mesmo, potencialmente perigoso –e Gentry (James Remar, ameaçador), um detetive no encalço de todos eles, mas que nutre um contraditório sentimento paternalista em relação à Bob.
Após uma tragédia pessoal, profeticamente ensaiada e sugerida na narrativa, se concretizar, Bob toma a decisão de abandonar tudo e tentar se reabilitar –mas, uma reabilitação nos moldes brutais e rígidos com que isso se dava nos anos 1970! –e então cruza-se com um conhecido, o padre Tom, interpretado (numa curiosa participação) pelo escritor de “The Naked Lunch”, William S. Burroughs, que discorre inusitadas e desconcertantes opiniões a respeito da condição do vício e dos viciados –e que, certamente, devem refletir não apenas o ponto de vista do personagem, mas sem sombra de dúvidas de seu intérprete também.
O ciclo narrativo de Van Sant se fecha com notável austeridade quando chegamos junto do protagonista na cena em que ele inicia todo o flashback que propiciou o filme, encerrando a trama com um comentário amargo que poderia depor contra o resultado final, não fossem as poucas usuais escolhas de seu diretor ao longo da produção.
Van Sant continuou fazendo (e ainda faz) bons filmes, com seu olhar normalmente voltado para os parias, os marginalizados e os desajustados, uma espécie aparentemente inevitável de desafortunada fauna viva gerada pela sociedade humana, que ele se mostra muito interessado em compreender.

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