sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Cats

 


Virou uma unanimidade, quando do lançamento da versão cinematográfica de “Cats”, o ato de desprezar o filme como uma equivocada adaptação da lendária peça musical da Broadway de autoria de Andrew Loyd Webber. Críticos e público escarneceram a obra como uma afronta ao bom gosto, um lapso absoluto e injustificável, um sofrimento de cento e dez minutos ao qual o expectador era submetido.

A verdade talvez seja que “Cats”, o filme, pertence a uma categoria inusitada e complicada de realização cinematográfica: Um filme para apreciações particulares, cujo amar ou odiar, está imensamente relacionado ao momento, e ao estado de espírito, ao qual cada expectador chegou nele –e certamente, a ida ao cinema, quando era um lançamento rondado até por expectativas de indicações ao Oscar, não era a circunstância mais apropriada.

Passado o tempo, a revisão de “Cats” sob a pecha de filme incompreendido, de produção mal-fadada e indiscutivelmente estranha, adquire certa compaixão do público, e –ouso dizer –haverá, sim, até quem possa apreciá-lo.

Num cenário de beco londrino agigantado –onde já ficam em evidência os vultuosos recursos do diretor Hooper –vemos bailarinos travestidos como gatos –em caracterizações que vão muito além do mero figurino teatral e que simulam uma controversa (e até sexualizada) realidade animal (repare nos interessantes movimentos digitais de suas orelhas!). Esse grupo de gatos de rua, auto-intitulados Jellicle Cats já na primeira música, recebe uma forasteira: Trata-se de Victoria (a bailarina Francesca Hayward), deixada no beco dentro de um saco de pano.

Delicada e bem-cuidada, Victoria se inteira da estranha rotina do lugar: Eis que ela chegou exatamente na aguardada noite em que, uma vez por ano, os Jellicle Cats testemunham um gato de rua ser escolhido para ascender ao Paraíso dos Gatos –um lugar essencial à simbologia fantasiosa da trama.

No decorrer daquela noite, Victoria –cujo fato de ser uma espécie de novidade no beco desperta o interesse de todos os tipos –conhece os inúmeros pretendentes à essa sublime dádiva: Jennyanydots (Rebel Wilson), uma gorda e hedonista gata de apartamento; Bustopher Jones (James Corden), apelidado ‘Gato de Polainas’, um felino glutão e bonachão dedicado a vasculhar latas de lixo atrás de comida; Gus (Ian McKellen), um velho gato sonhador cujo passado de aplaudidas apresentações a muito ficou para trás; Skimbleshanks (Steven McRae), gato sapateador e morador da estação de trem; e Grizabella (Jennifer Hudson) outrora uma gata de estimação de socialite, cujas más escolhas à levaram a viver nas ruas, menosprezada até mesmo por seus pares.

Além deles, Victoria conhece também a benevolente Madame Deuteronomy (Judi Dench), a gata que escolherá o graciado da noite. o bondoso mágico Mr. Mistoffelees (Laurie Davidson), os gêmeos ladrões Mungojerrie e Rumpleteazer (Danny Collins e Naoimh Morgan), o intratável gato malandro e conquistador Rum Tum Tugger (Jason Derulo), e o perverso Macavity (o magnífico Idris Elba), gato cheio de truques (mágicos, inclusive!) que almeja valer-se de seus aliados (a gata hipnótica e exuberante Bombalurina vivida pela cantora Taylor Swift e o feroz e maltratado gatão Growltiger interpretado por Ray Winstone) para tirar da jogada todos os seus concorrentes e forçar Madame Deuteronomy a escolhê-lo para ir ao Paraíso dos Gatos.

De uma linguagem toda própria já nos palcos –onde a humanização de personagens felinos era apenas o princípio de sua proposta lúdica –“Cats”, nesta transposição cinematográfica, recebeu do diretor Tom Hooper um tratamento efusivo, radical e corajoso. Não apenas a caracterização de seus personagens é um gesto que gera amor e ódio em proporções elevadas conforme o público, mas todas as suas escolhas (câmera na mão em diversas sequências musicais; ponto eletrônico com captação de som real durante as canções) depõem a favor desse conceito incontido, despido de pudor.

Como fez em “Os Miseráveis”, Tom Hooper opta pelo arrebatamento, pela emoção irrestrita a embriagar a plateia, entretanto, naquela ocasião, ele tinha os talentos de Hugh Jackman e Anne Hathaway como terreno sólido onde caminhar, aqui ele encontra mais instabilidade.

Nessa ênfase resoluta –e, a sua maneira, generosa –que faz de suas encantadoras qualidades tanto quanto de seus gritantes defeitos, “Cats” é um trabalho que se presta ao escrutínio, embora insista na brilhante iniciativa de sempre fazer com que a luz refletida na tela leve o público a lugares mágicos, cheios de assombro e emoções às vezes cafonas, para neles descobrir-se afetado pela arte.

Polêmico em seu resultado final qualitativo, “Cats” é, para uns, um lixo, para outros, uma maravilha. Para mim, é um filme repleto de graça e beleza, plenamente capaz de cativar.

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