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segunda-feira, 16 de abril de 2018

Tristana - Uma Paixão Mórbida

A carreira de Luis Buñuel caminha paralela à tumultuada história política da Espanha no século XX: Ao realizar em 1932 o documentário “Terra Sem Pão”, Buñuel foi expulso da Espanha, dominada pela ditadura de Franco. Tal exílio o levou a concentrar sua produção cinematográfica na França e no México.
Após um breve regresso para a co-produção de “Viridiana”, em 1963 (e assim mesmo afrontando as autoridades com o teor provocativo daquela obra) ele voltou à Espanha somente em 1969, por ocasião do falecimento da mãe, e por lá ficou iniciando os trabalhos neste roteiro ao lado de Julio Alejandro.
A ironia é que, Buñuel, um dos mais celebrados e conhecidos cineastas espanhóis, realizou apenas três filmes em sua Espanha natal: “Terra Sem Pão”, “Viridiana” e este “Tristana-Uma Paixão Mórbida”.
A analogia comumente associada à sua premissa é de que seu protagonista, Dom Lope, representa a própria Espanha, enquanto sua personagem-título, personificada por Catherine Deneuve, vem a ser a Igreja –em se tratando de Buñuel, contudo, existem inúmeras relações e reflexões possíveis.
Ambientada em Toledo (cidade que tem para o diretor um tremendo significado afetivo e pessoal), a trama mostra o pequeno burguês Dom Lope (Fernando Rey, mais do que nunca interpretando um alter-ego de Buñuel) às voltas com o recente falecimento da esposa que lhe deixou uma enteada, Tristana (Deneuve, linda, num personagem deliberadamente distinto de “A Bela da Tarde”), que ele se incumbe de cuidar.
Dom Lope é um personagem minucioso em suas contradições: Vive como um cidadão bem-apessoado, mas prega a defesa dos contraventores ante a polícia; desdenha da devoção clerical de Tristana e de sua empregada, mas pouco a pouco se sujeita e se submete a ela; e embora trate a própria Tristana como filha, em sua insidiosa luxúria não tarda a fazer dela sua amante. E a atitude dela, ao menos nessa primeira parte, de fato demonstra uma passividade que a torna maleável e vulnerável à toda sorte de intenções de Dom Lope, que Buñuel jamais descuida de tornar um personagem bidimensional (o vilão da história, por exemplo).
Aos poucos, Tristana expressa seu asco e sua indignação por Dom Lope, o quê a leva a abandoná-lo e a fugir com um pobre pintor (Franco Nero).
Os anos se passam, e Tristana regressa à vida de Dom Lope já com seu casamento bastante deteriorado (o personagem de Nero não tarda a deixá-la) e com a saúde invariavelmente comprometida (um câncer no joelho a leva a amputar uma das pernas).
O infortúnio dessa trajetória opera uma mudança em Tristana: Se antes ela era radiante, ainda que submissa; agora ela é amarga e intolerante, ainda que concordada –ela aceita as sugestões vindas dos próprios padres para que se case com Dom Lope, que a recebe de bom grado. Mas, o matrimônio, para Tristana, tem mera função cerimonial; ela já não suporta Dom Lope, a ponto de sequer segurar sua mão.
A cena da sacada onde –numa subversão cruel de “Romeu & Julieta” –Tristana oferece sua nudez (velada) ao surdo-mudo filho da empregada, e se regozija em notar que suscitou terror ao invés de fascínio, é uma ilustração poderosa e brilhante da decrepitude moral ocorrida à personagem.
Se Dom Lope é, então, a Espanha e Tristana é, assim, a Igreja, Buñuel registra aqui um casamento cheio de perversidade, de oscilante dependência e claras intenções políticas –uma relação que começa com um abuso que resvala na imoralidade do incesto e progride para uma relação definida por conveniências de ordem existencial e niilista. É uma aceitação que vem com o tempo e com a idade (Buñuel parece compreender) e que se instala por meio de rituais –e é assim que a história é contada –são preparativos à mesa, para o banho, e na hora de deitar; é ao longo dessas situações que o filme se desenvolve.
E é na ironia suprema de uma delas que ele se encerra: Dom Lope, outrora tão intransigente quanto à Igreja e seus representantes (como o próprio Buñuel o foi) se vê sentado à mesa, bebendo chocolate quente na companhia de padres, a discutir interesses corriqueiros, enquanto no corredor ao lado, Tristana insiste em treinar seu caminhar com suas muletas e sua única perna. Logo na seqüência, Dom Lope tem um infarto que Tristana, em sua inclemência, parece pouco interessada em ajudar. Ele morre, só e no frio (a janela é displicentemente aberta pela própria Tristana) salientando a infelicidade que Buñuel parece vislumbrar através desse amargo fim.
Ou você morre jovem e convicto, ou velho e assolado pelas conseqüências de suas escolhas.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Operação França

O grande problema de algumas produções que passaram à história como divisores de águas de seu tempo é que as futuras gerações, provavelmente, não irão conseguir enxergar neles a inovação que ostentaram em sua época, simplesmente porque as características pioneiras e meritórias de sua audácia foram assimiladas e repetidas por infindáveis outros filmes depois dele.
Tomemos “Operação França”, de William Friedkin, como exemplo.
Após pegar o cinema comercial norte-americano de assalto com uma revolução temática e estética na condução de um filme policial de ação –e conquistar 5 Oscars incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor –“Operação França” virou uma espécie de modelo a ser seguido, fazendo com que quarenta e tantos anos depois, ele se pareça muito com diversos filmes policiais realizados ao longo desse período: Até o próprio Friedkin tentou repetir sua bem ajustada fórmula com o eficaz “Viver e Morrer em Los Angeles”, nos anos 1980.
A abordagem de Friedkin –com lampejos audazes de elementos documentais, tendo ganhado pouco depois uma quase contraparte oriental na prodigiosa saga japonesa, “Os Documentos da Yakuza”, de Kinji Fukasaku –visava uma quase inversão de valores nos tópicos a que o público estava acostumado ver no gênero policial (ou em qualquer gênero): Uma distinção maniqueísta do bem e do mal, da lei e do crime.
Em “Operação França”, temos a cruzada obsessiva do policial Popeye Doyle (Gene Hackman, soberbo), detetive do departamento de narcóticos da Costa Leste, em Nova York, que leva a níveis pessoais a investigação para prender um metódico traficante de drogas francês (Fernando Rey, de vários filmes de Buñuel) que estabeleceu uma sofisticada conexão nos EUA para executar o seu tráfico.
Os dois antagonistas, Popeye Doyle e Alain Charnier, o traficante francês, recebem do roteiro e da direção, uma definição inesperada: Se o Popeye Doyle de Hackman é truculento e insensível –um exemplo pulsante do proletariado –o traficante de Fernando Rey exala suavidade e classe; nada nele soa como um vilão. Doyle não é um policial exemplar no sentido restrito do termo; com freqüência o vemos extravasar a linha do aceitável e nunca demonstrando tato; Charnier é educado, trata os aliados como amigos e nunca é visto cometendo atrocidades. Doyle chafurda no mundo cão que o diretor tão bem recria e, não raro, carrega Buddy Russo (Roy Scheider), seu grande amigo, para o fundo de suas obsessões; Charnier é refinado, freqüenta locais refinados, ostenta cultura. “Operação França” é, assim, um embate de duas figuras tão antagônicas e opostas quanto o são desafiadoras uma à outra; tal e qual no mais contemporâneo “Fogo Contra Fogo”, de Michael Mann, o filme não determina para qual dos dois o expectador deve torcer. É um eufemismo não muito sutil da luta de classes, sendo que o subúrbio depauperado e brutalizado é representado, na pessimista visão de Friedkin, pelo policial, enquanto que a elite corrupta e bem servida é representada por seu nêmesis –a criminalidade surge então como um fator apocalíptico inevitável trazendo a deterioração ao já combalido mundo urbano materializado na suja e cinzenta Nova York.
Prova dessa perda irreversível de valores acarretada pela barbárie é que, naquela que é a seqüência mais famosa do filme –a cena insana de uma perseguição de um carro à um metrô elevado montada então com um virtuosismo inédito no cinema –vemos, ao fim, não o bandido atirar pelas costas de seu inimigo, mas o próprio Popeye Doyle.
Duro, realista e memorável, o filme de Friedkin parece jogar algumas duras verdades para seu público valendo-se da poderosa reflexão propiciada pela ambigüidade. Quando o cerco em torno dos dois grandes adversários, Doyle e Charnier, aperta, contudo, o diretor Friedkin não teme levar essas caracterizações até as últimas conseqüências: Ele deixa de passar a mão na cabeça de Charnier, mostrando enfim que a imagem que ele passa é uma mera fachada: Na reação muito humana que ele e Doyle apresentam na palpitante seqüência final, somos obrigados a reconhecer que a lei e o crime não são conceitos relativos.
Mesmo que todo o resto o seja: “Operação França” se encerra num dos desfechos mais intrigantes, pessimistas e amargos do gênero.
Anos depois, como sugerido nesse final dúbio, “Operação França” ganhou uma continuação, desta vez dirigida por John Frankenheimer, mas o filme de William Friedkin já tinha estabelecido um patamar alto demais para que ela conseguisse igualar.

quarta-feira, 31 de maio de 2017

Esse Obscuro Objeto do Desejo

Por meio deste conto um tanto cruel e abusivo Buñuel parece se perguntar até que ponto o sentimento (ou, mais precisamente, o desejo) é capaz de se sobrepor à razão?
Pois, é exatamente o desejo que norteia as atitudes de Mathieu (Fernando Rey, perfeita personificação de muitas inquietações de Buñuel) transfigurado pela paixão por uma jovem, Conchita, ora interpretada por Carole Bouquet (virginal e pudica), ora interpretada por Ângela Molina (ardente e insinuante).
O fato de duas atrizes de índole e aspectos notadamente diferentes se revezarem no mesmo papel é um comentário tão direto quanto abrangente de Buñuel acerca da maneira multifacetada com que ele enxerga a dualidade no comportamento das mulheres, ou a natureza dos relacionamentos que os homens, na maioria das vezes, estabelecem com elas.
Certamente, também é um comentário a forma com que Mathieu se submete, pouco a pouco, aos caprichos dela, que vão se tornando cada vez mais vulgares e pecaminosos a medida que ele vai cedendo mais e mais a ela –a revelação do amor que o faz aceitar concessões intoleráveis se dá paralela ao descortinar da personalidade cada vez mais abusiva dela.
Vale observar também que essa crítica ao falso moralismo não foca no comportamento de Conchita como um exemplo de ordem misógina: Ao conceder à Mathieu o ponto de vista da história –que ele relata, pelo menos até os últimos dez minutos finais, à um grupo de passageiros no vagão de um trem –Buñuel também potencializa toda a subjetividade provável que os sentimentos do interlocutor podem suscitar; e não tenham dúvidas de que, também isso, faz parte de seu jogo!
No desfecho, contudo, Buñuel modifica a narrativa e mostra o filme sem as intervenções “autorais” de Mathieu, e nesses breves minutos derradeiros que se seguem, ele se mostra frio, até distanciado, o que termina explicando a forma abrupta e desconcertante com que o diretor abandona seus personagens.
Na qualidade de último trabalho de Buñuel, este é enfim um desfecho conclusivo de sua obra: Todos os ímpetos morais e sociais do ser humano parecem terminar, afinal, do objetivo pelo sexo. E Buñuel vê nessa conclusão, oportunidade para mostrar sua acidez, ainda que, do alto de seus setenta e sete anos de vida na época das filmagens, ele já se permitia ficar muito mais sereno do que em outros trabalhos onde ostentou mais contundência.

domingo, 16 de abril de 2017

1492 - A Conquista do Paraíso

Em 1992, a façanha de Cristovão Colombo ao encontrar as terras do Novo Mundo completou seus cinco séculos.
Para aproveitar tal data, naquele ano, dois filmes lançados versavam em torno desse tema: Um, “Cristovão Colombo-A Aventura do Descobrimento”, de John Glenn, chamava a atenção por seu elenco estelar (tinha Marlon Brando e uma ainda iniciante Catherine Zeta-Jones) e por ter um roteiro escrito por Mario Puzo.
Já o outro, este “1492-A Conquista do Paraíso”, de Ridley Scott, chamava de pronto a atenção por ser um projeto grandioso e arriscado, sem financiamento de quaisquer grandes estúdios norte-americanos –o quê fez dele a maior produção independente da história até então.
Um diretor conhecido pela audácia de seus projetos, Scott abraçou a megalomania inerente a este tipo de obra e concebeu um trabalho pulsante repleto de momentos extraordinários e inspirados (como o ataque de índios promovido à fortificação na parte final) e outros tantos claudicantes e irregulares.
Embora ostente uma quase sempre imponente identidade visual, o trabalho de Scott ao oscilar entre um conformismo clássico e um ocasional arrojo estético, se revela um trabalho aquém do nível qualitativo a que ele havia acostumado seu público: Ele vinha do sucesso de “Thelma & Louise” e, apesar do reconhecimento por “Alien” e “Blade Runner”, a década de 1990 representaria um período de declínio criativo que ele só viria a superar em 2001, com “Gladiador”.
Voltemos, contudo, a este filme: Ridley Scott nos narra a vida e o idealismo de Cristovão Colombo (Gerard Depardieu, soberbo), filho de tecelão genovês, navegador e o notório descobridor da América, que para singrar o mundo e provar que a Terra era redonda (!), desafiou a Coroa Espanhola (personificada na Rainha Isabel, a Católica, vivida com classe por Sigourney Weaver e no Tesoureiro Sanchez, interpretado astutamente por Armand Assante) e o Vaticano (Padre Antônio de Marchena, vivida por Fernando Rey, ator de diversos filmes de Buñuel), e acabou por descobrir um novo continente enquanto tentava encontrar uma nova rota para as Índias, via Ocidente.
Apesar disso, ele terminou esquecido pelos nobres da época.
Ridley Scott resgata a lembrança de seu legado neste filme envolto em todas as qualidades intrínsecas dele como cineasta (visual bem trabalhado e acachapante, competente direção de atores, rigor cênico, vigor histórico narrativo), mas prejudicado por um roteiro redundante que perde força a medida que deixa o momentos vultuosos da jornada de seu protagonista para trás.

Não está entre as maiores obras de Scott, mas não é, de maneira alguma, uma produção digna de indiferença.