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quarta-feira, 4 de outubro de 2023

O Escândalo


 Se em princípio Jay Roach foi um realizador de comédias compromissadas tão somente com o objetivo de fazer rir (como atestam os hilariamente ácidos exemplares da série “Entrando Numa Fria”), aos poucos, filme após filme, ele conseguiu migrar para o cinema uma capacidade que já demonstrava em obras televisivas: Uma percepção desigual e afiada para registrar com urgência sublime e relevância maiúscula as arestas sociais e comportamentais de certos aspectos da modernidade na política norte-americana, como atestam os formidáveis “Virada de Jogo” (feito para TV) e “Trumbo” (lançado em cinema). Neste magnífico “Bombshell”, Roach mantêm suas câmeras aguçadas no panorama político da América (sua trama abrange o período das eleições presidenciais norte-americanas de 2015-16), ao mesmo tempo que joga luz sobre um tema cada vez mais necessário: A cultura do assédio.

Ainda no ano de 2015, a âncora Megyn Kelly (Charlize Theron, espetacular) foi escolhida pelo canal de notícias Fox News para mediar os debates presidenciais entre os pré-candidatos republicanos, entre eles, aquele que terminaria ganhando a preferência –e, no ano seguinte, as próprias eleições –Donald Trump. Embora ferrenha defensora dos ideais ultra-conservadores de direita, Megyn foi fiel ao perfil combativo com o qual era vista na mídia e confrontou Trump com perguntas incisivas sobre sua alardeada misoginia.

O episódio gerou um impasse delicado na Fox News: Ao mesmo tempo em que a rede jornalística representava um dos maiores apoios à candidatura republicana –e Megyn beneficiava-se de relativa confiança do todo-poderoso presidente do canal Roger Ailes (John Lithgow, sordidamente convertido por quilos de maquiagem) –a jornalista comprou uma briga informal contra o candidato que passou a retuitar em mídia nacional várias ofensas contra ela.

Essa transformação forçada de paradigmas de Megyn coincidiu com outro acontecimento, também ressonante, nos corredores da Fox News; transferida de um programa do horário nobre para outro na ingrata programação da tarde (por não suportar o sexismo predominante de seus colegas de cena), a apresentadora Gretchen Carlson (Nicole Kidman, ótima) abriu um processo por antigos abusos sexuais contra o próprio Roger Ailes tão logo é, por fim, demitida.

Hábil e astuta, Gretchen tinha algumas cartas na manga, como a previsível atitude de sua demissão por parte de seu patrão manipulador, mas contava com a aparição, logo após sua iniciativa, de outras mulheres que também foram assediadas. É Megyn, inesperadamente, uma delas, entretanto, ela estava longe de ser a única: Também ganha bastante espaço na narrativa a circunstância de Kayla Pospisil (Margot Robbie, em corajosa e brilhante atuação), jovem produtora em ascensão profissional dentro da Fox News que é coagida, naquela que é de longe a cena mais aflitiva de todo o filme, por Roger Ailes em pessoa à levantar sua saia até que sua calcinha fique visível. Dentre todas essas personagens, somente  a de Kayla não é precisamente real –trata-se de um amálgama de pelo menos duas dezenas de mulheres que prestaram depoimento ao roteirista do filme, Charles Randolph (de “A Grande Aposta”).

Impressionante, entre outras coisas, é também o retrato que o filme de Roach faz do clima que surge, logo em seguida, nos corredores da Fox News: Com seu presidente sendo acoado por questões imprevistas de natureza procedural, a rede move seus recursos tentando provar o contrário, que Ailes era respeitador e inofensivo (funcionárias são obrigadas a vestir uma camisa em apoio ao chefe processado e depoimentos positivos são exigidos de praticamente todas as mulheres da empresa), que provas para quaisquer acusações eram inexistentes (uma severa operação de pente-fino, inclusive com o uso de escutas telefônicas, é adotada), e que a ex-contratada do canal, Gretchen Carlson, não era alguém confiável (todo o arsenal midiático da Fox News é subitamente voltado contra a reputação pessoal e profissional dela).

Contudo, as trajetórias íntimas de cada uma dessas três protagonistas, Megyn, Kayla e Gretchen, haverá de expor os caminhos tortuosos por meio dos quais, felizmente, a verdade se fez prevalecer, levando Ailes, após uma avalanche repentina de inúmeras acusações de assédio, a ser demitido pelo próprio dono da corporação, o magnata Rupert Murdoch (uma ponta de Malcolm McDowell).

Realizado com um brilhantismo à toda prova, “Bombshell” parece confrontar o expectador com uma difícil questão: Por meio de quais engrenagens nocivas, uma série de mulheres empoderadas, em plena década de 2010, são levadas à compactuar com o abuso sexual? Parte efetiva e crucial de um movimento que chegou até tardiamente ao entretenimento (o de obras que registram e confrontam esse comportamento tóxico), o filme de Jay Roach oferece um panorama primorosamente cristalino e bem construído dessas circunstâncias, para deixar que a conclusão fique inteiramente à cargo do público.

domingo, 23 de agosto de 2020

Virada No Jogo

Julianne Morre venceu o Oscar 2015 de Melhor Atriz por “Para Sempre Alice”, contudo, muitos são os que afirmam que o ponto alto de sua carreira predominantemente cinematográfico foi, por ironia do destino, o filme televisivo “Virada No Jogo”, pelo qual ela conquistou diversos prêmios anos antes, incluindo o Emmy Awards 2011 de Melhor Atriz.
Se “Virada de Jogo” tivesse sido feito para cinema é quase certo que o Oscar seria dela.
O filme também marca a consagração do premiado roteirista Danny Strong (que depois escreveria “Jogos Vorazes-A Esperança”), desenvolvendo uma trama sólida, eficiente e instrutiva a partir de eventos reais de ramificações escorregadias com personagens que não raro resvalam em certa ambiguidade; e ainda configura mais um belo exemplo da faceta desconhecida do diretor Jay Roach, mais conhecido por comédias deliberadamente grosseiras (como “Entrando Numa Fria”) e menos por suas austeras e elogiadas incursões na história da política norte-americana –entre as quais se insere “Virada de Jogo”.
Em 2008, os partidos americanos Republicano e Democrata iniciaram mais uma disputa à presidência da nação tendo como candidatos o veterano John McCain (Ed Harris) de um lado, e Barack Obama, de outro. Logo, ficou claro a grande vantagem populista que o carisma de Obama lhe garantia perante seu adversário.
Tentando compensar o tradicionalismo republicano sugerido pela figura de McCain, o seu principal conselheiro político Steve Schmidt (Woody Harrelson, sempre ótimo) sugeriu uma escolha estratégica para o candidato à vice-presidência: Alguém que despertasse a identificação dos eleitores e eleitoras indecisos, aos quais McCain não tinha apelo.
Entre várias opções logo surge o nome de Sarah Palin (Julianne Moore), governadora do estado do Alasca.
Cristã, ex-prefeita de sua cidade-natal e exercendo o cargo de governadora à 18 meses, Sarah surge como uma escolha providencial: Tinha predicados republicanos o bastante para agradar os ainda reticentes membros conservadores do próprio partido e representava uma opção diferenciada de inclusão capaz de fazer frente à proposta que tornava Obama tão fascinante aos olhos do público.
A aprovação de McCain e de todo o seu comitê eleitoral chegou quando ficou comprovado também que Sarah Palin tinha tanto carisma junto ao público norte-americano quanto seu adversário.
Entretanto, na pressa em realizar um opção bombástica que arrebatasse a eleição, o conselho de McCain deixou passar indícios que, ao longo da campanha, se tornaram gritantes: Nada familiarizada com política externa, a governadora Palin mostrou-se de um despreparo desconcertante em entrevistas que só fizeram abastecer às críticas à campanha de McCain e as várias sátiras que ela própria sofreu no processo –a famosa imitação de Tina Fey é mostrada inúmeras vezes.
Contudo, a própria Sarah não desejava desistir: Por sua competividade natural, pelo desejo de não desapontar McCain e por uma crença legítima (e ingênua) na qual queria o melhor para os EUA, ela submeteu-se a todo o escrutínio da máquina política norte-americana, o que incluiu o circo midiático formado em torno dela e que logo a transformou na figura central da oscilante derrocada da campanha de McCain.
Ela até tentou –seu debate vice-presidencial vitorioso contra o Senador Biden, recriado com primor e euforia é grande exemplo disso –mas, a forte pressão logo cobrou seu preço: Sarah ficou a beira de um colapso nervoso passando à ignorar as orientações de seus auxiliares de campanha.
Quando uma crise era superada, outra surgia: Na reta final da campanha, ciente de que seu apelo junto ao público carregava a popularidade (e os votos) de McCain nas costas, Sarah deixou que um certo estrelismo a afetasse; passou a mudar deliberadamente as decisões do roteiro eleitoral e a contradizer várias alegações feitas no começo à luz de alguma humildade.
O filme de Jay Roach revela detalhes peculiares e novelescos sobre esses bastidores, sempre mantendo um equilíbrio raro e impecável entre o gracejo, a crítica e a compaixão –Sarah Palin é recriada em minimalismos pontuais pela atuação brilhante de Julianne Moore sem cair na armadilha da caricatura e sem ceder à tentação do enaltecimento.
Pode parecer simples numa primeira impressão, mas o que é obtido em “Virada de Jogo” está longe de ser algo fácil ou comum: Um olhar sem retoques das imbricações éticas e circunstanciais da corrida eleitoral, onde seus retratados adquirem humanidade e dignidade, sem no entanto perder o viés de desleixo e falha que os levou à derrota.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Trumbo - Lista Negra

Um daqueles trabalhos de se ampara quase que integralmente no primor de seu ator principal (e o magnífico Bryan Cranston é um suporte espetacular diga-se de passagem), esta obra, apesar de tudo, representa um salto e tanto de sofisticação para seu diretor, o possivelmente subestimado Jay Roach: Ele finalmente começa a fazer para o cinema a transição que havia feito na TV –e que lá rendeu-lhe larga consagração; exclusivamente televisivos foram o ótimo “Recontagem”, e o ainda melhor “Virada de Jogo”, com Julianne Morre.
Todas obras pertinentes e de postura séria, reveladoras de um diretor preocupado e atento aos meandros numerosos dos pormenores que compõem a política, e que afetam a vida do cidadão comum.
E no cinema, o quê Jay Roach fez?
Comédias rasteiras, divertidas é verdade, mas vulgares até, do porte de “Entrando Numa Fria” (aquele com Robert De Niro e Ben Stiller) ou “Os Candidatos” (com Will Ferrel).
Dava a impressão que Roach reservava sua faceta de cineasta mais sério, mais ambicioso e mais capaz para a TV.
Com “Trumbo” ele parece finalmente harmonizar essas duas metades distintas como realizador num longa-metragem cinematográfico. Há humor aqui também, mas é um humor empregado com minúcia e astúcia, feito mais para pontuar o andamento da narrativa e dela não fazer um desafio enfadonho ao expectador, assim como serve igualmente para salientar uma das muitas características notáveis de seu biografado.
Uma correção: “Trumbo” não é exatamente uma biografia.
Roach apropria-se do trecho mais significativo da vida do roteirista Dalton Trumbo, para com isso construir uma trama pulsante sobre o direito à liberdade de expressão: O período no qual, logo após ser contratado por um estúdio por um valor recorde, ele é incluído na famigerada ‘lista negra’ na Hollywood dos anos 1940, quando uma paranóia anticomunismo gerada a partir do fim da Segunda Guerra Mundial deu início à Guerra Fria e a uma chamada ‘caça às bruxas’ nos EUA.
Trumbo, comunista convicto e declarado, logo se torna persona non grata em Hollywood (sendo encarcerado, inclusive!) a despeito de seu talento sem igual como escritor e de sua considerável retidão moral como ser humano. Nessa condição, ele se vê obrigado a usar pseudônimos ou outras pessoas para assinar seus roteiros que, independente disso, conquistam grande sucesso chegando até a ganhar (em dois casos específicos: “A Princesa e O Plebeu” e “Arenas Sangrentas”), o Oscar da Categoria –os quais ele ficou anos se poder receber!
Esses percalços (cadeia, empobrecimento e árdua redenção), assim como os de sua família, são mostrados ao longo de décadas. Em meio à essa jornada, Roach não tem pudor em eleger Bryan Cranston como nosso condutor, plenamente consciente da sintonia incomum que ele conquista com o papel –não só é um trabalho de primorosa reconstituição gestual, como também é uma atuação brindada por trejeitos planejados e organizados com carinho e zelo, emoldurando assim as frases espirituosas e afiadas que ele dizia.
Felizmente, o elenco de apoio consegue refletir a competência de um protagonista tão bom (caso contrário, o filme padeceria de um incômodo desequilíbrio): Diane Lane, ainda linda e pontual, como sua esposa, Cleo; Elle Fanning, doce e expressiva, como sua filha, Nikola; Helen Mirren, britanicamente perversa como Hedda Hopper; Michael Stuhlbarg como Edward G. Robinson; Louis C.K. como Arlen Hird; e John Goodman como Frank King.
Agora é só aguardar e torcer para que este filme acertado, fluido e prazeroso seja apenas o primeiro de várias outras obras cinematográficas que venham a revelar o cineasta completo que é Jay Roach.