terça-feira, 27 de dezembro de 2016

A Mosca

É provável que este seja o mais comercial dentre todos os filmes de David Cronenberg –apesar da larga aprovação de público de obras como “Marcas da Violência” e “Senhores do Crime” –embora ele, mesmo assim, não se submeta às convenções industriais de Hollywood.
O produtor Mel Brooks fez a mais feliz das escolhas ao selecionar Cronenberg para tocar o projeto que refilmaria o semi-clássico “A Mosca da Cabeça Branca”. Ao assumir a produção, Cronenberg manejou o material até extrair dele todas as inquietações que já começavam a definí-lo, então, como um autor estabelecido: “A Mosca” é, em essência, um terror sobre os riscos do uso incauto da tecnologia.
Uma mensagem que já existia no filme original, é verdade, mas que na transfiguração (muito mais que uma refilmagem!) proporcionada por Cronenberg se converte num pesadelo kafkiano de mutação gradativa na qual os horrores de abandonar a forma humana –seja em nível físico, racional ou até metafísico –são enfatizados pela aguda percepção com a qual o diretor embasa a perplexidade dramática e pessoal, ou pela maquiagem minimalista e chocante de Chris Wallas (que responde, por sua vez, pelo único Oscar que a obra recebeu).
No papel de Seth Brundle, Jeff Goldblum vive o personagem ao qual ele passou a ser para sempre relacionado –à despeito da participação anterior em “O Reencontro”, e de sua presença em grandes sucessos de bilheteria como “Jurassic Park” e “Independence Day”.
Brundle é um cientista muito próximo da conclusão de uma revolucionária máquina de teleporte. Para testemunhar tal feito, ele chama a bela jornalista Verônica Quaife (Geena Davis), com quem logo se envolve.
Uma certa noite, porém, Brundle inadvertidamente usa o teleporte em si mesmo (ele não havia tentado teleportar humanos) e, embora a experiência funcione, ele acaba entrando junto com uma mosca dentro a câmara de teleporte.
O resultado, despercebido de imediato, é que Brundle vai, pouco a pouco, abandonando traços de humanidade, para se tornar um ser hediondo e grotesco, misto de homem e inseto.
E é lógico que nas mãos de Cronenberg, tal argumento serve à uma detalhada sondagem do processo de mutação a que o protagonista irá se submeter; mais do que as transformações físicas –e elas são evidentes, explícitas, mostradas num nível tamanho de realismo e despojamento que suas imagens levam tempo a deixar a memória do expectador, e podem ser francamente nauseantes para alguns –Cronenberg conduz a trama com equivalente interesse nas transformações existenciais e internas de Brundle, que abraça sua metamorfose sem a aflição e o desespero que se vê no desafortunado protagonista de “A Mosca da Cabeça Branca”. Ao contrário dele, Brundle se mostra regozijado com as novas condições de seu corpo (chegando a sequestrar Verônica ao descobrir que ele espera um filho seu e, portanto, uma criança também sob os efeitos em potencial de sua transformação), até mesmo quando elas parecem realmente repulsivas; uma demonstração incontornável de Cronenberg de que sua mente, sem dúvida, foi também ela, modificada –o quê no final das contas importa muito mais ao diretor canadense, e ao potencial drama que ele desenlaça, do que à mera premissa apavorante.
Um trabalho brilhante em todos os sentidos.

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