terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Luna Papa

Dos mais poéticos e vibrantes trabalhos vindos do cinema do Tadjiquistão na década de 1990, este filme guarda grandes semelhanças com as obras do tcheco Emir Kusturica, sobretudo o maravilhoso “Vida Cigana” –é um olhar muito similar em poesia, humor e realismo fantástico sobre os percalços dolorosos e alucinantes da vida que o diretor Bakhtyar Khudojnazarov lança nas agruras vividas por seus personagens.
Ao centro de todos eles está a jovem Mamlakat (a cativante e expressiva Chulpan Khamatova) que, num ímpeto de fascínio por teatro e artes busca assistir a uma rara apresentação de um grupo de teatral nos confins de sua aldeia natal. Na calada da noite, e após uma série de peripécias frustrantes, a jovem encontra fortuitamente um homem que se diz ator e a engravida logo na seqüência –numa cena bela, onírica e desconcertante onde ela sequer tem a oportunidade da enxergar o seu rosto.
Munidos dessa informação –a do pai da vindoura criança se dizer um ator –o pai dela, que vive da conturbada venda de coelhos em meio às zonas hostis de seu território patrulhado por remanescentes da guerra do Afeganistão, e o irmão (Moritz Bleibtreu, de “Corra, Lola, Corra” e “O Grupo Baader-Meinhof”) que voltou da guerra variado da cabeça graças à explosão de uma mina, partem em busca do homem que engravidou Mamlakat, provocando tumulto a cada cidade que passam –e ilustrando diversas metáforas visuais que o diretor lança sobre as conseqüências da guerra para a sociedade e o aflito ser humano comum.
A medida que a história avança (e a maternidade de Mamlakat a torna alvo da intolerância de seus vizinhos de aldeia), novas atribulações irão insistir em aparecer para aquela família, até mesmo na sensacional cena quando o filme ensaia um enganoso final feliz e iludibria o expectador com um instante tão surreal quanto dramaticamente espantoso –sem entregar as surpresas, mas é algo que o cinema argentino lançou mão, algumas décadas depois, com o excelente “Um Conto Chinês” (o que talvez levante a possibilidade de que tenha sido uma referência).
A trama, nunca realista nem pedante ou condescendente, é narrada em seu lirismo pela própria criança que aguarda, dentro da barriga da mãe, todos esses acontecimentos tumultuados terminarem, para por fim vir ao mundo.
Bastante indicativo da fervilhante inventividade cultural que permeava as obras da Ásia Central, e que em geral pouca expressão ganharam aqui no Brasil, “Luna Papa” é uma ode carinhosa à um tipo muito especial de personagens concebidos pelo cinema ao longo das gerações: Aquele que mesmo diante das amarguras e aflições implacáveis da vida buscam preservar a vontade de ser feliz. Por isso, a encantadora Mamlakat, protagonista desta obra, tem muito em comum com a Cabíria de Federico Fellini (e o diretor italiano é, também ele, uma referência onipresente e essencial ao filme) e o Carlitos, de Charles Chaplin.

Só isso já lhe garante um lugar no céu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário