quarta-feira, 7 de março de 2018

Geração Roubada

Interessante como o cinema da Austrália (ao menos, o cinema ‘sério’ da Austrália), em geral, costuma refletir seguidamente sobre um mesmo tema: O de não pertencer a nenhum lugar.
Realizadores como Peter Weir ou Nicholas Roeg dedicaram algumas de suas obras a avaliar os desdobramentos e ramificações dessa sensação tão peculiar e indistinta.
Certamente, o povo aborígine é, com freqüência, um tópico e tanto para ilustrar essa questão. Buscando remeter uma austeridade e um engajamento com o qual ele até então não era muito relacionado, o diretor Phillip Noyce (mais conhecido como realizador dos filmes de ação, “Jogos Patrióticos” e “Perigo Real e Imediato”) se debruça aqui sobre essa faceta tão particular do cinema australiano e sobre essa história de três meninas aborígines mestiças.
Filhas de nativas com pais brancos, as irmãs Molly (a expressiva Everlyn Sampi) e Daisy (Tianna Sansbury), mais a prima Gracie (Laura Monaghan), são bruscamente retiradas de seu povoados por agentes policiais (segundo a lei de apropriação instituída em meados de 1931, o governo podia remover as crianças mestiças de sua tribo para submetê-las à outra educação e outra cultura) a mando do reverendo Neville (Kenneth Brannagh, formidável como sempre).
Levadas ao Centro Nativo de Treinamento Moore River, uma rotina esmagadora e inclemente as aguarda: Elas recebem um tratamento desumano, são obrigadas a trabalhar, a estudar e a falar no idioma obrigatoriamente inglês (para que esqueçam o dialeto aborígine) e são selecionadas para ir a outras escolas. O plano do Sr. Neville é encaminhá-las para casamentos arranjados e, num procedimento nauseante que ele ilustra com convicção alarmante, fazer com que a raça à qual pertencem acabe se dissipando ao longo das gerações a partir da miscigenação.
Alguns dias de passam até que a mais velha delas, Molly, inflada de indignação resolve arrastar as outras duas em sua fuga. Não era comum as tentativas de fuga de crianças do Moore River; para isso, eles tinham um rastreador aborígine, o Sr. Moodoo (David Gulpilil, célebre ator aborígine que participou de “Walkabout-A Longa Caminhada”, “Crocodilo Dandee” e outros). Contudo, a esperteza de Molly vislumbra uma vantagem: Fugir horas antes de uma chuva que se forma, para que assim a água apagasse seus rastros.
Essa e outras atitudes perspicazes de Molly (como encobrir as pegadas andando pelo rio, ou plantar indícios propositais na direção errada) vão conferindo às meninas uma prerrogativa que as permite ir muito além das outras.
Eventualmente, as três crianças encontram a grande cerca que percorre todo o território australiano, erguida para afastar os coelhos das grandes plantações do lado oposto –“Rabbit-Proof Fence”, a Cerca À Prova de Coelhos, é à propósito o título original do filme.
Molly e as outras sabem que, seguindo sempre à margem da cerca, elas chegarão na região de sua tribo, onde sua mãe aflita as aguarda, no entanto, existem 2.400 quilômetros à separá-las de casa.
A direção de atores exercida por Noyce não é excepcional, mas ele conta com um roteiro pleno de solidez e objetividade, e com o encanto e a espontaneidade natural de suas três pequenas protagonistas. Sua história (baseado em fatos reais) é deveras tão extraordinária que ele deixa que ela fale por si, enxugando seu filme de firulas e outros incrementos desnecessários.

Nenhum comentário:

Postar um comentário