segunda-feira, 28 de maio de 2018

O Doce Amanhã


O diretor e roteirista Atom Egoyan emprega aqui toda a peculiaridade com a qual uma parcela do público e da crítica passaram a enxergar o cinema canadense em meados dos anos 1990, em grande parte graças a obras estranhamente sofisticadas do próprio Egoyan (“Exótica”) e de outros realizadores como Denis Arcand (“O Declínio do Império Americano”, “Jesus de Montreal” e “As Invasões Bárbaras”).
Desse período em diante, o cinema canadense passou a inspirar uma dramaturgia de reflexão sobre a inadequação, sobre os fluidos conceitos de realidade e sobre as torções possíveis de uma experimentação narrativa.
O fato de Egoyam, aqui, elaborar esses princípios com habilidade e consciência artística foi reconhecido com uma indicação ao Oscar 1998 de Melhor Diretor –conquistado, por sua vez, por James Cameron e seu “Titanic”.
O grande Ian Holm vive Mitchell Stevens, um advogado cínico e desiludido que chega a uma cidadezinha do Canadá cujos moradores ainda estão em vias de se recuperar de uma tragédia: Um acidente com um ônibus escolar que matou várias crianças da região.
A intenção de Stevens é passar por cima de sua dor e propor-lhes um negócio lucrativo ao mover um processo judicial por negligência contra autoridades locais.
O filme de Egoyan oscila entre várias perspectivas, entrecortando inclusive a percepção de tempo (há acontecimentos que se passam bem antes, e outros bem depois do acidente) sempre registrando seus personagens com uma genuína tristeza: Dolores (Gabrielle Rose), a devastada motorista do ônibus na ocasião; os Walkers, cuja mulher, Risa (Alberta Watson), nutre um caso com Billy Ansell (Bruce Greenwood), pai de duas crianças mortas no acidente; Nicole (Sarah Polley), uma das sobreviventes e peça fundamental no desenlace do processo; e mesmo o próprio Mitchell, que tem na filha, viciada em drogas, sua própria fonte de angústia.
Como fez David Lynch em “Twin Peaks” e no primordial “Veludo Azul”, Egoyan usa desse expediente para vislumbrar facetas de sordidez por trás das convenções da pequena comunidade, como adultério e até mesmo incesto, administrando esses detalhes sombrios com uma abordagem dúbia e desconcertante.
O livro de Russell Banks no qual se inspira é uma observação da conciliação em contraponto ao inconformismo natural que se segue ao luto, e essa idéia até se encontra presente no filme, embora o roteiro escrito também por Egoyan passeie por outras considerações –ele utiliza os versos do poema “O Flautista de Hamelin” como uma forte alegoria que dá um eixo em torno do qual as reflexões existenciais da narrativa giram, observando, dessa forma, a dor dilacerante de adultos cujas crianças (e a inocência em última instância) foram irreversivelmente arrancadas de suas vidas.

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