quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Vinhas da Ira

O cinema grandioso de John Ford jamais havia se prestado a um retrato de tamanho preciosismo de uma realidade amarga e sombria como ele o faz em “Vinhas da Ira”. É notório o fato de que, se no princípio, seus filmes fluíam com eficiência pelos tons aventurescos dos gêneros que abordava (sendo o faroeste o mais expressivo deles), nos seus trabalhos subsequentes, ele já enxergava com opressão as vastidões dos cenários americanos: A consciência de um mundo brutal de injustiças ininterruptas começava a contaminar seu cinema. É para um mundo imerso nessas condições que retorna Tom Joad (o magnífico Henry Fonda) depois de quatro anos na cadeia.
A Grande Depressão transfigura os EUA num lugar desolado. Os homens bravos que antes viviam da terra já não têm meios de resolver os próprios problemas –como o vizinho de Tom, que relata a ele quando sua casa foi demolida e ele e sua família despejados; ele queria alguém em quem atirar, julgando que tal ato (a neutralização de um inimigo específico) resolveria o problema.
Mas, John Ford lembra a seus personagens, à plateia e a si mesmo, que não estamos num faroeste: Os EUA dos anos 1930 permanecem um lugar de extremos absolutos (os pobres são absolutamente pobres), mas as soluções já têm a complexidade do mundo moderno; há politicagem, burocracia, industrialização e taxas.
Trocando em miúdos, os homens que viveram da terra agora devem deixa-la. É assim, à sombra de uma desilusão onipresente que Tom irá seguir, junto de sua numerosa família e do ex-pregador Casy (John Carradine, ótimo), de Oklahoma para a Califórnia, onde alimentam esperanças de encontrar um futuro melhor com trabalho e dignidade para todos.
Durante toda a longa e inclemente trajetória atravessando os Estados Unidos é nas condições subumanas que a narrativa brilhante de Ford se concentra, num senso de registro tão assombroso que deve ter soado transgressor para sua época –“Vinhas da Ira” é, em todos os sentidos, um marco na observação realista cinematográfica.
A construção indefectível dos expedientes da dramaturgia (plenamente correspondentes à excelência do livro de John Steinbeck) prossegue quando os personagens chegam à Califórnia e se descobrem ainda incapazes de se desvencilhar das mesmas desventuras que os afugentaram de seu lar –a pobreza, o descaso, a fome, a falta atroz de alternativa.
Para onde quer vá, a família de Tom encontra circunstâncias ainda mais indignas e ultrajantes; no primeiro acampamento que encontram, eles têm de se amontoar ao lado de pessoas ainda mais desamparados e famintas do que eles mesmos.
Seguindo viagem, nada fica melhor: Uma fazenda de pêssegos os emprega, no entanto, o sistema adotado para manter os empregados sempre na linha é uma mal disfarçada alienação escravagista. É nesse trecho que Tom vê Casy pela última vez: Quando suas aptidões de oratória –e de enxergar a injustiça nos tópicos em que ela deve ser denunciada e criticada –começam a influenciar profundamente o próprio Tom.
Eles fogem para outro acampamento, desta vez bancado pelo governo, aparentemente mais humano e feliz. Mesmo lá, porém, os perigos de uma civilização insidiosa ainda espreitam: Policiais corruptos tentam toda hora burlar as leis para afrontar os pobres trabalhadores honestos; e há sempre quem resgata do passado o fato de Tom estar em liberdade condicional –e, portanto, passível de ser preso a qualquer momento.
Farto de tanto descaso, Tom decide deixar sua família para que sua presença não lhes acarrete mais problemas do que já têm –e no maravilhoso monólogo final de Henry Fonda, o personagem parece enfim encontrar um propósito transparente e salutar para perseguir.

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