quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Fruto do Paraíso

O prólogo, como é inerente ao cinema surrealista realizado com fúria e inconformismo naqueles idos de 1970 na Tchecoslováquia, se mostra de pronto desafiador: Imagens de um casal nu em pêlo se sobrepõem a takes psicodélicos de natureza morta que se alternam vertiginosamente mostrando frutas, árvores, folhas, grama, capim, mato e outras plantas. Uma música –algo como um canto gregoriano –intervém com um sinal mais claro de narrativa: Esta é, pois, a história de Adão e Eva, e de como a serpente, por meio da tentação, levou Eva a quebrar, ao lado de Adão, a única proibição estipulada por Deus no Paraíso.
A diretora Vera Chytilová parece querer detectar e denunciar o profundo machismo enrustido nessa parábola bíblica. E ela o faz ressaltando-o por meio de fina ironia.
Dos corpos nus que introduzem algum escândalo desse início lúdico (e que encontram evidente paralelo na contracultura hippie da época), a diretora salta para a trama de fato: Numa espécie de colônia de férias, Eva (Jitka Novákova), ao lado de seu marido Joseph (Karel Novak), experimenta os dias de ócio habituais, perdendo-se pelo campo às voltas com banalidades, enquanto Joseph flerta com outras mulheres sem a menor cerimônia.
Entre os demais frequentadores do lugar, Eva fica intrigada com um estranho chamado Robert (Jan Schmid) que sempre se apresenta vestido de vermelho e, no princípio, parece propositadamente evita-la.
Esse comportamento dá a Eva alguma distração que a indiferença do machista Joseph parece incapaz de resolver. Assim, Eva encontra a chave do apartamento de Robert e lá sacia a curiosidade com seus pertences –entre eles, um carimbo de tinta vermelha do número 6 (um dos muitos indícios satânicos relativos ao personagem) com o qual Eva inadvertidamente marca a própria coxa desnuda.
Mais tarde, numa notícia de jornal, Eva lê a respeito de um assassino à solta nas redondezas identificado somente pelo fato de marcar suas vítimas com um 6 vermelho carimbado na testa (!). A despeito da fortíssima suspeita de que Robert seja esse assassino, o fascínio de Eva não desvanece, pelo contrário, se acentua ainda mais levando ela e Joseph a construir um titubeante triângulo amoroso.
Na analogia à que submete a parábola religiosa, Vera Chytilová transforma Eva numa representação perplexa da própria população tcheca, e sua indefinição amorosa se dá entre a realidade da opressão (Joseph) e a possibilidade real e imediata de morte (Robert), numa alusão do regime soviético de então –é por isso que, ao ceder a Robert, ela termina toda vestida de vermelho (a cor do socialismo) transfigurada em lama e brutalidade; pois, Robert reconhece amá-la, mas é incapaz de ignorar seus instintos assassinos e, portanto, a ameaça com uma arma.
Eva até consegue se desvencilhar de Robert e voltar para Joseph, cuja expressão indica pouca vontade de tê-la de volta depois de tudo. Eva se despe do vestido vermelho (da ideologia socialista) e aparenta oferecer a flor restante (o fruto proibido, talvez) para Joseph –entretanto, no ângulo de câmera escolhido, Eva oferece o fruto, na verdade, para o público.
Essa –e outras considerações mais –estão abertas a muitas outras interpretações como rege a cartilha de livre associação desse tipo de cinema, porém, é inevitável relacionar as escolhas estéticas e narrativas de Chytilová com a situação de sua pátria durante a realização deste projeto.

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