O prólogo, como é inerente ao cinema
surrealista realizado com fúria e inconformismo naqueles idos de 1970 na
Tchecoslováquia, se mostra de pronto desafiador: Imagens de um casal nu em pêlo
se sobrepõem a takes psicodélicos de natureza morta que se alternam
vertiginosamente mostrando frutas, árvores, folhas, grama, capim, mato e outras
plantas. Uma música –algo como um canto gregoriano –intervém com um sinal mais
claro de narrativa: Esta é, pois, a história de Adão e Eva, e de como a serpente,
por meio da tentação, levou Eva a quebrar, ao lado de Adão, a única proibição
estipulada por Deus no Paraíso.
A diretora Vera Chytilová parece querer
detectar e denunciar o profundo machismo enrustido nessa parábola bíblica. E
ela o faz ressaltando-o por meio de fina ironia.
Dos corpos nus que introduzem algum escândalo
desse início lúdico (e que encontram evidente paralelo na contracultura hippie
da época), a diretora salta para a trama de fato: Numa espécie de colônia de
férias, Eva (Jitka Novákova), ao lado de seu marido Joseph (Karel Novak),
experimenta os dias de ócio habituais, perdendo-se pelo campo às voltas com
banalidades, enquanto Joseph flerta com outras mulheres sem a menor cerimônia.
Entre os demais frequentadores do lugar, Eva
fica intrigada com um estranho chamado Robert (Jan Schmid) que sempre se
apresenta vestido de vermelho e, no princípio, parece propositadamente
evita-la.
Esse comportamento dá a Eva alguma distração
que a indiferença do machista Joseph parece incapaz de resolver. Assim, Eva
encontra a chave do apartamento de Robert e lá sacia a curiosidade com seus
pertences –entre eles, um carimbo de tinta vermelha do número 6 (um dos muitos
indícios satânicos relativos ao personagem) com o qual Eva inadvertidamente
marca a própria coxa desnuda.
Mais tarde, numa notícia de jornal, Eva lê a
respeito de um assassino à solta nas redondezas identificado somente pelo fato
de marcar suas vítimas com um 6 vermelho carimbado na testa (!). A despeito da
fortíssima suspeita de que Robert seja esse assassino, o fascínio de Eva não
desvanece, pelo contrário, se acentua ainda mais levando ela e Joseph a
construir um titubeante triângulo amoroso.
Na analogia à que submete a parábola religiosa,
Vera Chytilová transforma Eva numa representação perplexa da própria população
tcheca, e sua indefinição amorosa se dá entre a realidade da opressão (Joseph)
e a possibilidade real e imediata de morte (Robert), numa alusão do regime
soviético de então –é por isso que, ao ceder a Robert, ela termina toda vestida
de vermelho (a cor do socialismo) transfigurada em lama e brutalidade; pois,
Robert reconhece amá-la, mas é incapaz de ignorar seus instintos assassinos e,
portanto, a ameaça com uma arma.
Eva até consegue se desvencilhar de Robert e
voltar para Joseph, cuja expressão indica pouca vontade de tê-la de volta
depois de tudo. Eva se despe do vestido vermelho (da ideologia socialista) e
aparenta oferecer a flor restante (o fruto proibido, talvez) para Joseph
–entretanto, no ângulo de câmera escolhido, Eva oferece o fruto, na verdade,
para o público.
Essa –e outras
considerações mais –estão abertas a muitas outras interpretações como rege a
cartilha de livre associação desse tipo de cinema, porém, é inevitável
relacionar as escolhas estéticas e narrativas de Chytilová com a situação de
sua pátria durante a realização deste projeto.
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