O cinema de Martin Scorsese é o cinema do
impulso. Ao longo de sua magnífica carreira, ele encontrou no inconformismo um
dos mais perenes e precisos registros do impulso.
Tendo realizado um promissor longa-metragem,
ainda na faculdade de cinema, “Quem Bate À Minha Porta?”, Scorsese concebeu um
segundo filme fascinante na procura
implacável por uma voz, um meio de expressar-se que definisse a si próprio.
Nessa busca por esse entendimento de si mesmo como diretor de cinema, Scorsese deixou
de lado sua zona de conforto (os guetos suburbanos, tão bem retratados em seu
filme seguinte “Caminhos Perigosos” e em outras obras que vieram depois) e
explorou aqui algumas opções de linguagem e estilo, sem escapar (ou mesmo sem
evitar) um ou outro lapso de narrativa ou de continuidade.
“Sexy e Marginal” –ou “Boxcar Bertha” –se passa
nos EUA do período da Grande Depressão, e a abordagem que Scorsese assume para
sua trama remete aos expedientes indomáveis da Nova Hollywood de então (o crime
por uma ótica justificada e dramatizada, algo em que Scorsese rapidamente virou
expert) com nítida influência no cinema intuitivo de Arthur Penn.
Em meados da década de 1930, acompanhamos a
jovem protagonista Bertha interpretada por uma coisinha linda chamada Barbara
Hershey (que dezessete anos depois, retomaria essa notável colaboração com
Scorsese em “A Última Tentação de Cristo”).
Tirada da companhia do próprio pai (que morre
num acidente de avião) logo na primeira cena, Bertha, pouco mais que uma
adolescente, se envolve com o idealista e sindicalista Bill Shelly (David
Carradine), enquanto tenta sobreviver na transição constante de vagões de trem
que conduzem clandestinamente pessoas como eles para todos os recantos dos EUA.
Quando Shelly é capturado pela polícia, Bertha
se vê desampara em meio aos desiludidos da América –e naquele tempo, a
mendicância era um estilo de vida ao qual se aderia com frequência. Todavia,
Bertha conhece Rake (Barry Primus), um apostador ianque com quem não demora
muito para reencontrar Shelly.
Juntos do negro Von Morton (Bernie Casey), eles
aderem a outro estilo de vida, também comum ao período: A criminalidade, com
sucessivos assaltos a bancos e vagões de passageiros. Não sem uma certa
relutância de Shelly que enxerga no crime uma contravenção de natureza
completamente diferente da oposição política ao sistema explorador que ele
almejava.
A narrativa de Scorsese se constrói assim ao
sabor dos imprevistos que determinam seu próprio filme; por um lado, ele busca
seguir com certa integridade dos registros do livro de Ben L. Reitman no qual
se baseia, por outro, ele também permite que as cenas se concretizem a partir
dos improvisos com os quais o orçamento limitado pode arcar (a produção é de
Roger Corman), e nisso ele também se orienta pelo senso de condução de seu
diretor, e pela energia de seus próprios atores, fundamentais na composição de
personagens que representam fundamentos morais à trama –e que sem tal percepção
tornariam o filme inconsequente e amoral.
Ao tentar se opor a um figurão (John Carradine)
cujos domínios por meio de um trem fazem lembrar o personagem de Gabrielle
Ferzetti em “Era Uma Vez No Oeste”, a gangue de Shelly cai numa cilada da qual
apenas Bertha consegue escapar.
Encurralada na prostituição
pela falta de alternativas, ela reencontra Von Morton e Shelly no trecho final
do filme, para que uma conclusão banhada em sangue amarre com minuciosa
reflexão as diversas considerações éticas do filme: Vemos, por exemplo, o negro
–alvo de incontáveis circunstâncias de racismo –protagonizar de forma galante e
apoteótica a maior de todas as chacinas. Mas, não é só; no terreno fértil para
a barbárie e a discriminação que Scorsese enxerga ser os EUA da Grande
Depressão há espaço para a Caça às Bruxas (a inclinação ao comunismo de Shelly
lhe representa muitos aborrecimentos ao longo de todo o filme), para o
feminismo (a trajetória da própria Bertha que passeia pelas parcas e árduas
opções da mulher) e até para a segregação americana da Guerra de Secessão
(Rake, a fim de evitar rusgas entre sulistas, tentava inutilmente disfarçar seu
sotaque ianque). Todas essas mazelas, e outras mais, que fragmentam a América
são colocadas numa ótica fulgurante e vívida por esse jovem Martin Scorsese, e
por ele próprio, encerradas numa única e
amarga constatação: A de que somos inescapavelmente culpados por nossos pecados
–algo inquestionável na cena em que um Shelly crucificado no trem, em forte
referência religiosa, deixa para trás, moribundo, uma perplexa Bertha numa vã
tentativa de salvá-lo.
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