terça-feira, 27 de agosto de 2019

Sexy e Marginal

O cinema de Martin Scorsese é o cinema do impulso. Ao longo de sua magnífica carreira, ele encontrou no inconformismo um dos mais perenes e precisos registros do impulso.
Tendo realizado um promissor longa-metragem, ainda na faculdade de cinema, “Quem Bate À Minha Porta?”, Scorsese concebeu um segundo filme fascinante  na procura implacável por uma voz, um meio de expressar-se que definisse a si próprio. Nessa busca por esse entendimento de si mesmo como diretor de cinema, Scorsese deixou de lado sua zona de conforto (os guetos suburbanos, tão bem retratados em seu filme seguinte “Caminhos Perigosos” e em outras obras que vieram depois) e explorou aqui algumas opções de linguagem e estilo, sem escapar (ou mesmo sem evitar) um ou outro lapso de narrativa ou de continuidade.
“Sexy e Marginal” –ou “Boxcar Bertha” –se passa nos EUA do período da Grande Depressão, e a abordagem que Scorsese assume para sua trama remete aos expedientes indomáveis da Nova Hollywood de então (o crime por uma ótica justificada e dramatizada, algo em que Scorsese rapidamente virou expert) com nítida influência no cinema intuitivo de Arthur Penn.
Em meados da década de 1930, acompanhamos a jovem protagonista Bertha interpretada por uma coisinha linda chamada Barbara Hershey (que dezessete anos depois, retomaria essa notável colaboração com Scorsese em “A Última Tentação de Cristo”).
Tirada da companhia do próprio pai (que morre num acidente de avião) logo na primeira cena, Bertha, pouco mais que uma adolescente, se envolve com o idealista e sindicalista Bill Shelly (David Carradine), enquanto tenta sobreviver na transição constante de vagões de trem que conduzem clandestinamente pessoas como eles para todos os recantos dos EUA.
Quando Shelly é capturado pela polícia, Bertha se vê desampara em meio aos desiludidos da América –e naquele tempo, a mendicância era um estilo de vida ao qual se aderia com frequência. Todavia, Bertha conhece Rake (Barry Primus), um apostador ianque com quem não demora muito para reencontrar Shelly.
Juntos do negro Von Morton (Bernie Casey), eles aderem a outro estilo de vida, também comum ao período: A criminalidade, com sucessivos assaltos a bancos e vagões de passageiros. Não sem uma certa relutância de Shelly que enxerga no crime uma contravenção de natureza completamente diferente da oposição política ao sistema explorador que ele almejava.
A narrativa de Scorsese se constrói assim ao sabor dos imprevistos que determinam seu próprio filme; por um lado, ele busca seguir com certa integridade dos registros do livro de Ben L. Reitman no qual se baseia, por outro, ele também permite que as cenas se concretizem a partir dos improvisos com os quais o orçamento limitado pode arcar (a produção é de Roger Corman), e nisso ele também se orienta pelo senso de condução de seu diretor, e pela energia de seus próprios atores, fundamentais na composição de personagens que representam fundamentos morais à trama –e que sem tal percepção tornariam o filme inconsequente e amoral.
Ao tentar se opor a um figurão (John Carradine) cujos domínios por meio de um trem fazem lembrar o personagem de Gabrielle Ferzetti em “Era Uma Vez No Oeste”, a gangue de Shelly cai numa cilada da qual apenas Bertha consegue escapar.
Encurralada na prostituição pela falta de alternativas, ela reencontra Von Morton e Shelly no trecho final do filme, para que uma conclusão banhada em sangue amarre com minuciosa reflexão as diversas considerações éticas do filme: Vemos, por exemplo, o negro –alvo de incontáveis circunstâncias de racismo –protagonizar de forma galante e apoteótica a maior de todas as chacinas. Mas, não é só; no terreno fértil para a barbárie e a discriminação que Scorsese enxerga ser os EUA da Grande Depressão há espaço para a Caça às Bruxas (a inclinação ao comunismo de Shelly lhe representa muitos aborrecimentos ao longo de todo o filme), para o feminismo (a trajetória da própria Bertha que passeia pelas parcas e árduas opções da mulher) e até para a segregação americana da Guerra de Secessão (Rake, a fim de evitar rusgas entre sulistas, tentava inutilmente disfarçar seu sotaque ianque). Todas essas mazelas, e outras mais, que fragmentam a América são colocadas numa ótica fulgurante e vívida por esse jovem Martin Scorsese, e por ele próprio,  encerradas numa única e amarga constatação: A de que somos inescapavelmente culpados por nossos pecados –algo inquestionável na cena em que um Shelly crucificado no trem, em forte referência religiosa, deixa para trás, moribundo, uma perplexa Bertha numa vã tentativa de salvá-lo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário