O erotismo era um fator indissociável do cinema
brasileiro na década de 1980. Ou o filme o empregava como imprescindível apelo
de público –e como incontornável elemento para sua depreciação –ou corria o
risco de ser completamente ignorado.
Alguns realizadores –como Walter Hugo Khouri ou
Silvio de Abreu, em “Mulher Objeto” –recusavam-se a abir mão dessa opção narrativa
sob a ameaça de constar como mais uma pornochanchada e produziam obras que se
amparavam com relevância e conhecimento de causa, por assim dizer, na questão
da sexualidade.
“Ele, O Boto” é um desses trabalhos.
O roteiro concebido por Lima Barreto, com base
numa lenda amazonense, podia certamente ter lá suas segundas intenções –e o
argumento do boto que se transforma em homem para seduzir as mulheres
praticamente pedia por um tratamento que levasse em conta o aspecto sexual –no
entanto, o diretor Walter Lima Jr. Impõe tantos improvisos de ordem dramática,
tantos desdobramentos e divagações narrativas na premissa inicialmente esboçada
que termina por desconstruí-la.
Num vilarejo de pescadores, no coração da
Amazônia, corre à boca pequena a temerosa lenda do boto, mamífero aquático
similar aos golfinhos que, transfigurado na forma de um homem (e interpretado
com altivez e maliciosa propriedade por Carlos Alberto Riccelli) vem à
superfície para enredar as moças sonhadoras num jogo de sedução.
Os homens o temem (pois, deles é capaz de tomar
as mulheres) e querem, portanto, caça-lo –todavia, o boto tem seus truques e não pode ser morto
por qualquer um.
As mulheres, por sua vez, têm lá sua parcela de
apreensão (aquelas seduzidas pelo boto se perdem para sempre nas águas do rio
ou mergulham num transe do qual nunca mais escapam), mas no geral nenhuma delas
consegue resistir ao encanto folclórico da criatura.
A encenação de Lima Jr., beneficiada por uma
direção de fotografia plena de sensibilidade, captura o naturalismo regional
com um senso árido inerente ao cinema nacional de então, enquanto justapõe seus
vários personagens relacionados direta ou indiretamente às intervenções da
lendária criatura.
Dessa forma, se o filme de Lima Jr. começa
episódico, visitando aqui e ali circunstâncias onde homens e principalmente
mulheres tiveram sua vida transformada pela aparição do boto, aos poucos, vemos
essas pontas soltas de um panorama coloquial formar um todo a partir da segunda
metade, quando os fatores irrelevantes (como a personagem de uma ainda muito
jovem Dira Paes, garota que ignora o primo apaixonado para entregar-se ao boto)
começam a ser abandonados, e os elementos que importam de fato a narrativa
(como o rapaz que afirmam, por ser filho do boto, ser o único capaz de mata-lo;
ou a jovem mãe dele vivida por Cássia Kiss, cujo rude marido vivido por Ney
Latorraca, empreende uma caçada ao boto quando ela é levada) começam a
trabalhar em conjunto para levar a um clímax que, se não é perfeito, busca
dignamente convergir o máximo possível de sua estrutura rumo a um desfecho
coerente e coeso.
A despeito de ser esse
isolado exemplo de bom acabamento no nosso maltratado cinema, hoje sabe-se que
a lenda do boto era uma forma de se encobrir estupros em localidades
ribeirinhas distantes perpetrados em jovens moças por seus próprios familiares
(!); quando a única suspeita masculina do abuso (que resultava quase sempre em
gravidez) vinha a ser em geral o próprio pai, eis que aparecia a conveniente
história do boto para convencer as mentes ignorantes e esconder os monstros bem
verdadeiros.
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