Duas foram as bases literárias para o elogiado
trabalho da diretora Laís Bodanzki: O primeiro, e certamente mais evidente, foi
o livro brutalmente auto-biográfico de Austregésilo Carrano, “O Canto dos
Malditos”, cujo teor acomodava uma crítica incisiva e contundente ao descaso e
a precariedade do sistema manicomial brasileiro de então (ele passou por
clínicas psiquiátricas durante os anos 1970); e o segundo, já bem mais sutil,
tratava-se da obra “Carta Ao Pai”, de Franz Kafka, livro no qual –tal como este
filme –sempre esteve em pauta a relação cheia de rancores entre pai (aqui
vivido por Othon Bastos) e filho (Rodrigo Santoro, em grande atuação).
Seus personagens estão em conflito desde o
princípio, por questões inerentes a qualquer choque de gerações, entretanto, é
provavelmente a falta abissal de diálogo que leva Neto a ser internado, pelo
próprio pai, numa clínica psiquiátrica: Ele encontra um baseado de maconha no
bolso da jaqueta do filho e daí para julgá-lo viciado é um pulo.
A clínica promete uma desintoxicação garantida,
mas não é bem assim: Na realidade desumana dos hospitais psiquiátricos de
então, Neto é engolido por um sistema que transfigura seus pacientes em
indivíduos ainda mais defeituosos do que quando entraram.
O médico da clínica (Altair Lima) só está
interessado nos repasses monetários do governo, o que ele não terá se não tiver
pacientes internados: A recuperação de seus internos é, portanto, a última de
suas preocupações; na verdade, quando mais internos a clínica tiver (e não
pacientes curados, veja bem!), mais garantido será de que o financiamento do
governo venha.
Sendo assim, não interessa a ninguém ali
qualquer recuperação de Neto, nem tampouco o fato de que seu pai internou-o por
um mal-entendido; ele é submetido ao coquetel de drogas obrigatório a todo o
paciente (o que em pouco tempo o deixa dopado, flácido e sorumbático), e quando
suas tentativas de sair dali se tornam expressivas demais, sofre o eletrochoque
–durante as visitas de seus pais (a mãe é vivida por Cássia Kiss), ele é visto
somente no bem-cuidado jardim para visitação (e não na lúgubre instalação
interna), o médico trata de alertá-los para os efeitos naturalmente paranóicos
de seus delírios de abstinência (para que seus apelos genuínos por ajuda não
sejam levados em conta) e a engorda provocada por um dos efeitos colaterais do
coquetel de drogas leva-os a crer que ele está comendo bem e sendo bem-tratado
(e não deixado à mercê de uma rotina massacrante de presídio).
Quando, enfim, os apelos de Neto afetam sua mãe
e convencem seu pai a tirá-lo de lá, o mal já está feito: Neto está socialmente
inutilizado, com manifestações agudas de depressão e surtos psicóticos –é um
deles que o leva para outra clínica (das duas mostradas no filme,
representativas das várias pelas quais o autor passou), na qual a antipatia de
um dos enfermeiros (Jairo Mattos), o leva a sofrer doses cavalares de
psicotrópicos injetáveis e a penar por dias inteiros numa espécie de solitária
escura e úmida.
Lançado em 2001, e peça
bastante fundamental na campanha que o próprio Austregésilo Carrano moveu
contra a metodologia inaceitável dos manicômios brasileiros, “Bicho de Sete
Cabeças” era um produto de cinema híbrido ao mesclar elementos vindos da fase
da Retomada (economia de recursos, filmagens de guerrilha, praticidade
espartana de encenação e realização) com aspectos emergentes do Novo Cinema
Brasileiro, com obras que galgariam uma qualidade insuspeita nos anos por vir
–é um trabalho de louvável primor na direção, e revelador do grande talento de
Rodrigo Santoro, até então visto como um mero galã televisivo. Foi depois desta
forte atuação que ele começou uma carreira bastante significativa no cinema
norte-americano.
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