sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

A Cor Púrpura


 Parecia haver uma espécie de frustração em Steven Spielberg enquanto ele, na medida em que obtinha mais e mais sucesso em Hollywood como um dos grandes realizadores de fantasia do cinema, não conseguia obter a mesma aclamação e respeito como cineasta sério. O rótulo o incomodava.

Dessa iniciativa em não se deixar prender numa tendência e num gênero (ao contrário do que ocorreu, por exemplo, com Alfred Hitchcock), vinha a atitude de Spielberg em alternar trabalhos voltados para o público infanto-juvenil e obras destinadas aos adultos, uma tática que, pode-se dizer, ele mantém até hoje. Nesse sentido, uma das primeiras experiências de Spielberg no campo da seriedade foi o filme “A Cor Púrpura”.

As lentes de Spielberg se voltam para a dolorida trajetória de Celie (a sensacional Whoopy Goldberg, estreando no cinema) que, ainda menina nova, foi violentada pelo pai e dele engravidou. Separada do filho assim que deu a luz, bem como da irmã que adorava, ela foi em seguida vendida a um fazendeiro viúvo (Danny Glover), de quem passou a cuidar dos filhos e da casa, numa rotina nem um pouco melhor do que a de antes: Também o marido era bruto, insensível e rude.

Durante toda essa extensa narrativa de “A Cor Púrpura”, o cineasta de fantasia que Spielberg sempre foi parece querer prevalecer e se manifestar, encontrando os mais inusitados e inesperados meios para dar até mesmo um encanto lúdico à toda sorte de infortúnios que vemos transcorrer na tela: Ele se vale da direção de fotografia de Allen Daviau para conceber cenas de um deslumbre visual sem par, cujas inventivas técnicas por vezes ameaçam tornar sua trama de dor, superação e humanismo subserviente às próprias imagens. Fosse um outro realizador e o resultado final de “A Cor Púrpura” certamente seria bem diferente; felizmente, seu enredo tem força, empatia e relevância para se manter sólido na percepção do público, o que ajuda a atravessar seu potencialmente prejudicial terço final –o momento em que as pressões dramatúrgicas mais pressionam as escolhas da condução –e manter-se na memória como um belo e comovente registro.

Se não é de todo bem sucedido ao emular algum presumido realismo –lapso que era até de supor da parte de Spielberg –“A Cor Púrpura” foi o primeiro dentre vários esforços no terreno do drama humano, os quais, com o passar dos anos, lapidaram o diretor Spielberg de forma a torná-lo um cineasta plenamente capaz de conceber obras como “A Lista de Schindler”, “O Resgate do Soldado Ryan”, “Ponte dos Espiões” e outros.

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