quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Rambo III


 Tendo causado certa surpresa com a premissa até certo ponto original do primeiro filme (o cinema de ação norte-americano, na época, estava ainda a tatear suas próprias características) e arrebatado o público com uma mudança de tom do personagem na megalomaníaca e bem-sucedida segunda produção, a série “Rambo”, na chegada de seu terceiro longa-metragem, já havia caído nas graças da plateia. Com efeito –como costuma ocorrer em inúmeras trilogias –foi nesse terceiro filme que a pressão das altas expectativas do público se fez sentir.

Se em “Rambo I”, o personagem de Stallone empreendeu um catártico acerto de contas com as mazelas existenciais da sociedade norte-americana (relacionadas ao Vietnam) e, no segundo, lançou-se numa batalha ainda mais emblemática e despida de sutilezas contra o próprio Vietnam, em “Rambo III”, tendo exaurido as possibilidades dessa questão, o contexto sócio-político da nova trama voltou-se para um conflito mais atual: A situação dos rebeldes do Afeganistão, colhidos num fogo cruzado de ideologias entre os EUA e a União Soviética que remetia aos interesses da Guerra Fria de então. Esse detalhe, torna “Rambo III” estranhamente significativo –trata-se de um dos pouquíssimos trabalhos dentro do cinema hollywoodiano a tratar desse período da Guerra do Afeganistão –assim como, hoje, brutalmente anacrônico –é pois, de uma ironia atroz que, naquele final dos anos 1980, os russos (sempre eles) sejam colocados como vilões e, por consequência, os rebeldes insurgentes do Afeganistão (que eram então armados pelo próprio governo dos EUA) sejam retratados como guerreiros honrados e desejosos de justiça.

É uma moldura que, na opinião dos realizadores, traz profundidade e seriedade ao filme, entretanto, acrescenta muito pouco na opinião do público indiferente que foi ao cinema conferí-lo. Nesse sentido, a notícia de que Stallone fizera 100% das cenas de ação sem nenhum dublê pesou muito mais na campanha de marketing.

A terceira aventura do soldado-símbolo da Era Reagan começa com John Rambo exilado numa espécie de mosteiro, buscando fugir de seus fantasmas a exemplo do que ele dera a entender em seu discurso ao final de “Rambo II” –essa filosofia, contudo, não o impede de ingressar num torneio de lutas brutais com vidro quebrado colado às luvas da mão, na cena que abre o filme. Assim, Rambo é mais uma vez procurado pelo Coronel Trautman (Richard Crenna) que, como antes, requisita suas, digamos, habilidades: Ele quer que Rambo participe de uma incursão no Oriente Médio, onde ele e outros soldados norte-americanos devem ajudar os afegãos em sua luta contra os invasores soviéticos. No entanto, Rambo não deseja envolver-se em mais guerras e recusa o pedido, obrigando Trautman a agir por conta própria. Mas, durante a dita operação, o outrora mentor de Rambo acaba capturado pelos inimigos. Com o amigo prisioneiro, resta à Rambo fazer algo que não queria: Envolver-se em mais um conflito.

Ele vai, assim, ao Afeganistão –onde uma miríade de coadjuvantes francamente desinteressantes e discursivos aparecem –com a intenção de encontrar Trautman e livrá-lo do jugo dos vilões e, como no segundo filme, acaba lutando (e vencendo!) pelos EUA toda uma guerra que, até então, eles não conseguiam vencer.

Contudo, na única consideração que o filme parece deixar bem clara, os novos  conflitos políticos e bélicos do Século XX (e que adentrariam com ainda mais complexidade o Século XXI) não se revelam tão preto no branco quanto as guerras de antes –talvez, a guerra do Vietnam tivesse sido o último combate às claras da era moderna, pouco antes do surgimento de um novo tipo de guerra, na qual conceitos distintos, territoriais e existenciais moldaram inimigos invisíveis, não dotados de uma nacionalidade ou mesmo de um rosto, mas de um propósito sombrio e, com frequência, incompreensível. Refletir a esse respeito passa longe de qualquer intenção em “Rambo III” –ele é, quando muito, um filme de ação usual, como muitos que Stallone realizou e certamente infinitamente menos envolvente e eletrizante do que os dois primeiros filmes –e seus responsáveis estavam muito longe de serem capazes de profetizar o quanto irônico ele soaria algumas décadas depois quando os mesmos afegãos, aqui pintados como rebeldes amigáveis, exóticos e oprimidos, acabariam por gerar facções, milícias e  organizações como aquela que viria a deflagrar o atentado ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001.

Há, portanto, uma verdadeira coleção de inusitadas ironias a cercar “Rambo III” –o fato de que os rumos alheios e amargos da História o fizeram um retrato involuntário de uma circunstância com a qual o governo dos EUA equivocou-se por completo, pagando um alto preço por isso –mas, a maior delas é que, não fosse por isso, seria um filme banal e esquecível (possivelmente o mais fraco de toda a série) cuja eventual escolha de seu contexto o faz um dinossauro de curiosa observação aos olhos de toda uma nova geração de expectadores.

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