quarta-feira, 12 de julho de 2017

Vício Frenético

Impecável o estudo de personagem e personalidade movido por Abel Ferrara –com imprescindível contribuição do magnífico ator Harvey Keitel –neste drama urbano, que versa sobre as profundezas angustiantes da fé travestido de filme policial.
De início aparentando um aspecto implacável, o policial dos subúrbios de Nova York vivido por Harvey Keitel deixa-se levar por uma sucessão de vícios (jogatina, drogas, ou mesmo a obsessão por um homicídio). É um personagem tão marginal quanto os desqualificados que persegue. As cenas que Ferrara registram são exemplos batentes da maneira simbiótica com que ele –a exemplo de todos os protagonistas de Ferrara –se mescla ao ambiente a que pertence, e esse ambiente, no caso dos filmes do diretor, costumam sempre refletir um calvário mundano de corrupção e sordidez para todos os lados (tão exemplar quanto desconcertante é a cena na qual ele insulta e intimida um grupo de jovens mulheres ao volante, com esse abuso de poder despertando-lhe tal excitação que ele chega a masturbar-se na frente delas!).
Se Harvey Keitel compõe um personagem que não faz assim questão alguma de ganhar a simpatia do público, ele também demonstra zelo em sua composição, bem como uma ética toda particular na maneira com que ele está impecavelmente inserido neste desafiador conto moral. Há, contudo, em algum momento desse trajeto, um instante intenso em que ator e diretor (em sintonia perfeita na forma com que entendem o personagem) contemplam a necessidade de redenção, fruto de uma fé inabalável incrustada nas entranhas da alma que toda a sujeira do mundo não foi capaz de soterrar.
Reencontrar a fé, no entanto, é uma coisa, conciliá-la com as contradições e vicissitudes da pecaminosa vida urbana, como bem trata de mostrar a sensacional narrativa de Ferrara, é outra.
Tal e qual numa parábola bíblica, o diretor mostra ao público e ao personagem que os percalços de sua sina, somados, não apenas expõem suas fragilidades humanas, como também o levam a um desfecho perigoso: A redenção que ele passa a buscar nos vinte minutos finais do filme é, portanto, um gesto de transformação em relação a tudo que praticou e se tornou, e a morte a guardá-lo, inevitável, é um paliativo da percepção profundamente católica que Abel Ferrara impõe ao seu trabalho, de longe, o mais pontuado por orientações e questionamentos de ordem metafísica.
Grande filme.

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