Impecável o estudo de personagem e
personalidade movido por Abel Ferrara –com imprescindível contribuição do
magnífico ator Harvey Keitel –neste drama urbano, que versa sobre as
profundezas angustiantes da fé travestido de filme policial.
De início aparentando um aspecto implacável, o policial
dos subúrbios de Nova York vivido por Harvey Keitel deixa-se levar por uma
sucessão de vícios (jogatina, drogas, ou mesmo a obsessão por um homicídio). É
um personagem tão marginal quanto os desqualificados que persegue. As cenas que
Ferrara registram são exemplos batentes da maneira simbiótica com que ele –a exemplo
de todos os protagonistas de Ferrara –se mescla ao ambiente a que pertence, e
esse ambiente, no caso dos filmes do diretor, costumam sempre refletir um calvário
mundano de corrupção e sordidez para todos os lados (tão exemplar quanto
desconcertante é a cena na qual ele insulta e intimida um grupo de jovens
mulheres ao volante, com esse abuso de poder despertando-lhe tal excitação que
ele chega a masturbar-se na frente delas!).
Se Harvey Keitel compõe um personagem que não
faz assim questão alguma de ganhar a simpatia do público, ele também demonstra
zelo em sua composição, bem como uma ética toda particular na maneira com que
ele está impecavelmente inserido neste desafiador conto moral. Há, contudo, em
algum momento desse trajeto, um instante intenso em que ator e diretor (em
sintonia perfeita na forma com que entendem o personagem) contemplam a
necessidade de redenção, fruto de uma fé inabalável incrustada nas entranhas da
alma que toda a sujeira do mundo não foi capaz de soterrar.
Reencontrar a fé, no entanto, é uma coisa,
conciliá-la com as contradições e vicissitudes da pecaminosa vida urbana, como
bem trata de mostrar a sensacional narrativa de Ferrara, é outra.
Tal e qual numa parábola bíblica, o diretor
mostra ao público e ao personagem que os percalços de sua sina, somados, não
apenas expõem suas fragilidades humanas, como também o levam a um desfecho
perigoso: A redenção que ele passa a buscar nos vinte minutos finais do filme é,
portanto, um gesto de transformação em relação a tudo que praticou e se tornou,
e a morte a guardá-lo, inevitável, é um paliativo da percepção profundamente
católica que Abel Ferrara impõe ao seu trabalho, de longe, o mais pontuado por
orientações e questionamentos de ordem metafísica.
Grande filme.
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