“Dia de muito é véspera de nada...”
A obra de Fellini em geral (e “A Doce Vida”, em
particular) corre o sério risco de sofrer a incompreensão de parte do público,
tão pouco acostumado ao tom operístico, bufão, desordenado, mirabolante e muito
italiano que ele costumava dar aos seus trabalhos.
Para Federico Fellini, o cinema era uma forma
de arte onde ele tinha a chance de conceber um amálgama de suas paixões, um
afresco nos quais se sobrepunham as lembranças da juventude, os amores e as
inclinações artísticas –e, desde o começo ficou claro, o gosto pessoal de
Fellini era, também ele, muito peculiar: Mulheres de peitos enormes (e, não
raro, grandes decotes), encenações caóticas (e que o irmanavam ao estilo do
mestre do surrealismo, Luis Buñuel), um aspecto quase sempre circense.
Por isso mesmo, era sempre desconcertante
quando ele enveredava por uma narrativa mais intimista e melancólica –o quê,
ironicamente, ocorria com alguma freqüência.
O grande cineasta italiano vinha de grandes
obras como “Noites de Cabíria” e “A Estrada da Vida” –e ainda viria a fazer
outras ainda maiores –quando decidiu conceber este afresco em forma episódica
sobre o universo da ebuliente classe alta das colunas sociais. Na época,
Fellini já era famoso o suficiente para presumir que ele sabia muito bem a
respeito do quê estava falando, e este filme é aquele onde melhor se percebe
uma observação existencial à qual é normalmente relacionado outro grande autor
italiano: O mestre do vazio e da incomunicabilidade, Michelangelo Antonioni.
O grande Marcello Mastroianni é Marcelo Rubini,
jornalista de celebridades em Roma no início da década de 1960. Seu ofício
resume-se a ser uma testemunha do hedonismo e da falta excrucitante de
perspectivas de uma classe social que a muito perdeu toda e qualquer razão de
ser. Seus esforços na intenção de fazer parte de uma elite privilegiada,
reforçados pelo ressentimento de sua humilde origem no campo, só o empurram
cada vez mais para essa estranha alienação, da qual ele gradativamente
questiona menos.
Assim, no roteiro construído com o auxílio de
uma série de grandes pensadores italianos da época (mais que apenas
roteiristas, eram filósofos e professores), como Píer Paolo Passolini, as
atribulações de Marcelo se sucedem ao longo de sete dias e sete noites,
oscilando entre o triste (a busca vã de alguém para quem expressar as
angústias, traduzida no relacionamento ineficaz entre Marcelo e uma socialite,
Maddalena, interpretada por Anouk Aimée), o gaiato (a tentativa sôfrega de
Marcelo em conter as vontades imaturas de uma estrela de cinema, vivida pela
deliciosa Anita Ekberg, o quê culmina na antológica seqüência de banho na
Fontana Di Trevi), o absurdo (as crianças que mobilizam veículos de mídia e uma
legião de curiosos ao tentar imitar o milagre dos meninos de Fátima), o
sensacionalista, o trágico (o amigo intelectual vivido por Alain Cunny, que
vira notícia ao se suicidar depois de matar toda a família) e o indiferente (a
cena final quando Marcelo se vê incapaz de se comunicar com uma bela moça na
praia devido ao som das águas do mar –um arremate que rima com a cena inicial,
onde ele não consegue travar uma conversa com algumas jovens devido ao som de
um helicóptero –o quê o leva à melancólica conclusão de que nada mais resta,
senão aderir àquilo tudo, àquele mundo de festividades enfadonhas e à companhia
daquelas pessoas vazias).
Como é sintomático em sua filmografia, Fellini
usa de um sentimento irreprimível –no caso, a percepção de uma tristeza
insolúvel, mesmo diante dos momentos de maior aclamação, sucesso e paparicação
–para moldar um de suas obras-primas e justamente por isso, por essa
transparência de emoções, essa sinceridade plena, fazer dela algo tão perene e
universal; pode não ser inteiramente compreendida em razão de seu caráter de
filme de arte, mas, as lições deixadas por ele, sejam elas de ordem
cinematográfica (a técnica narrativa influenciou inúmeros realizadores nas
décadas por vir) ou afetiva (o discurso acerca dos valores reais da arte e a
dicotomia entre fama, realização e felicidade continuará sempre atual), são e
permanecerão sendo inquestionáveis.
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