quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Paixão


Integrante daquela melindrosa lista dos trabalhos de Jean Luc Godard apenas integralmente recomendados aos já devidamente iniciados em sua obra, “Paixão” não é –como haveria de se esperar –um filme fácil.
Lançado em 1982, quando Godard já tinha se deixado convencer pela adoração unilateral de seus apreciadores que era um gênio absoluto e que seus filmes tinham por obrigação, portanto, serem absolutamente geniais, ele conta uma trama tão fragmentada, tão dispersa numa narrativa pretensamente desafiadora, tão refém da necessidade de Godard ser Godard que quase não se consegue achar um fio da meada.
“Paixão” tem por protagonista, na maior parte das vezes, o mal-humorado Jerzy (Jerzy Radziwilowicz), um cineasta –e, portanto, alter-ego de Godard –cuja distância de sua Polônia natal (distância essa imposta por lamentáveis circunstâncias políticas) o leva a filmar na Suécia. Mas, o que Jerzy, em seu ímpeto autoral quer filmar?
Imagens, somente. Imagens reproduzidas de quadros de obras de arte –e que assim exigem dos atores posições estáticas sem mover um músculo e da iluminação, uma perfeição imperturbável, onde a menor oscilação de luz acarreta frustração.
E como o cinema não é pintura –ele se faz com movimento –Jerzy se vê continuamente insatisfeito com os resultados dessa empreitada.
Também outros personagens, divididos entre a insatisfação e o ideal, surgem orbitando Jerzy. Há, por exemplo, Isabelle (Isabelle Hupert) que, tirada da usina onde era operária, se torna uma presença confidente entre os membros da equipe de filmagem, cuja função ela não saberia dizer qual é. Há, também Hanna (Hanna Schygulla, deveras todos os personagens têm os nomes correspondentes de seus intérpretes!), uma atriz também ela polonesa, e talvez um relacionamento do passado de Jerzy, que precisa constantemente lidar com os constrangimentos da própria imperfeição –o pudor registrado com brilho onde ela assiste uma filmagem em videotape da própria performance –e os rompantes bipolares da relação com Michel (Michel Piccoli), membro da equipe de filmagem.
Isso, além da aparição da lindíssima Myriem Roussel (de “Je Vous Salue, Marie”, lançado no ano seguinte) interpretando uma jovem atriz muda, porém, essencial em dado momento para a composição de uma determinada imagem que parece, com efeito, existir somente na cabeça frustrada de Jerzy –e a nudez de Myriem Roussel parece também se mostrar uma obsessão para o próprio Godard neste e no filme subsequente que fez com ela.
No tênue contexto em que todos os integrantes dessa fauna estão inseridos, todos representam pequenos lampejos da reflexão que Godard lança sobre a arte, seu significado e sua representação, e também sobre os equívocos acarretados pela transposição da arte para uma outra mídia –o cinema –que lhe é oposta em tantos aspetos; afinal, se a arte de pintura é contemplação e imobilidade, o cinema é som e fúria, não?

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