sexta-feira, 22 de novembro de 2019

A Lenda de Beowulf

Depois do passo inicial dado pelo diretor Robert Zemeckis na confecção de um longa-metragem totalmente gerado a partir da tecnologia da captura de performance (resultando no natalino “O Expresso Polar”), o seu projeto seguinte nessa mesma esteira pareceu bem mais ambicioso: Elaborar o que seria a tradução cinematográfica definitiva para o poema épico sobre a lenda de Beowulf e Grendel –já adaptada em inúmeros filmes obscuros e, em geral, de qualidade B.
Soava promissor: Quais maluquices Zemeckis não seria capaz de engendrar na história uma vez que a captura de performance (como “Expresso Polar” deixou bem claro) prescindia de qualquer limitação humana?
Para amplificar ainda mais a expectativa do público, os roteiristas do projeto eram o quadrinista Neil Gaiman e o premiado Roger Avary (de nada menos que “Pulp Fiction-Tempo de Violência” e “Regras da Atração”).
Beowulf (vivido por Ray Winstone, com sua versão digital consideravelmente rejuvenescida) é um cavaleiro que singra a Europa do Século VIII no objetivo de criar uma fama quase mitológica para si mesmo, difundindo suas próprias histórias (algumas providencialmente exageradas de como venceu diversos monstros).
Nessa espécie de busca, Beowulf chega onde parece ser o objetivo para o qual foi talhado: Na Ilha de Sjaelland, próxima à cidade de Roskilde, na Dinamarca, ele tem conhecimento do temor experimentado pelo rei Hrothgar (Anthony Hopkins) e seu povoado, afrontados quase todas as noites por um monstro implacável conhecido como Grendel –no registro de inesperada humanização promovido pela percepção desigual dos roteiristas, Grendel, no entanto, não prima por ser ameaçador: Em seus momentos solitários, ele é mostrado padecendo de uma dor insuportável uma vez que sua sensível audição o torna selvagem ao menor barulho de festejos do local.
Quando o embate tão acalentado pela narrativa entre o cavaleiro e o monstro por fim acontece –pouco antes da primeira metade se encerrar –não é exatamente por Beowulf que o expectador torce; as opções estilísticas com as quais a trama é contada tanto enfatizam a vaidade arrogante e presunçosa de Beowulf como as características humanamente sofredoras de Grendel (que a propósito é interpretado com todos os cacoetes histriônicos por Crispin Glover).
Mortalmente dilacerado em sua luta com Beowulf, Grendel busca refúgio nas cavernas longíquas que lhe servem de casa, onde uma criatura de poder e maldade milenar responde a ele como sua mãe.
Depois que ele morre, a represália dela é macabra: Na noite em que os aldeões comemoram a destruição de Grendel, vários de seus moradores amanhecem trucidados e enforcados no salão de festas local.
Com o trono de Sjaelland como prêmio, e tendo a relíquia conhecida como Chifre de Ouro como garantia disso, Beowulf encara sozinho a erma jornada até a morada de Grendel disposto a dar cabo em definitivo de sua lendária mãe. Porém, o cavaleiro tem uma inesperada surpresa: A mãe de Grendel (chame-mos-na de Criatura) não é exatamente um monstro, ou um demônio, ou qualquer ser tenebroso que ele estivesse esperando; a Criatura se revela um ser sobrenatural, sim, e certamente perigoso, porém, nas formas sedutoras da atriz Angelina Jolie –que a captura de performance recria com perfeição facial e corporal em cena (inclusive com direito a uma reveladora nudez!).
 Ela seduz Beowulf fazendo com ele um acordo; ele lhe dá um filho (em troca de Grendel, aquele que dela tirou) assim como o Chifre de Ouro, e ela, por meio de seus poderes dá a ele força e vitalidade eternas –o que deixa subentendido que a Criatura outrora fez o mesmo acordo com o rei Hrothgar, e que Grendel seria então seu filho.
Os anos se passam com Beowulf, após o suicídio de Hrothgar, ocupando o posto de rei e desposando a mulher dele, a rainha Wealtheow (Robin Wright). Todavia, se antes Beowulf tinha contentamento e sede de vida, agora, ele ostenta um semblante amargo, resignado; se antes (quando Hrothgar ainda era o rei), seu desejo por Wealtheow era ardente, agora, a presença dela o constrange, em grande parte, porque Wealtheow dirige a ele o mesmo olhar de decepção que antes dirigia à Hrothgar.
Quando um jovem cavaleiro, quase inadvertidamente, encontra e rouba o Chifre de Ouro da caverna da Criatura, ela e Beowulf novamente entram em rota de colisão; afinal, com a relíquia roubada –e entregue nas mãos de Beowulf –a trégua está também rompida, e por conta disso, Beowulf terá de enfrentar o seu próprio filho com a Criatura (um transmorfo capaz de assumir a forma de dragão) a fim de proteger seu reino.
Essas tintas adultas que conferem um teor sombrio e fatalista à “Lenda de Beowulf” infelizmente não se refletem em acréscimos qualitativos ao resultado final; a sensação mais imediatamente perceptível é a do tremendo prejuízo que isso acarreta à empatia do protagonista e de sua conexão com o público –e está aí, o pequeno detalhe que compromete toda a bela carpintaria narrativa e o impecável aparato técnico e visual do filme: Todas as suas qualidades estão a serviço de um herói que não consegue despertar simpatia no expectador.
Comentários em torno do fato da captura de performance ser uma tecnologia que rapidamente se torna ultrapassada são assim redundantes (nesse sentido “O Expresso Polar” envelheceu, mas não perdeu seu encanto); seu grande pecado é justamente falhar na ausência de calor humano.

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