sábado, 30 de maio de 2020

Um Lindo Dia na Vizinhança

Em 1998, o jornalista Tom Junod foi incumbido de traçar um perfil de uma dentre várias personalidades tidas como heróis americanos para uma matéria na revista onde trabalhava. Ao invés das 400 palavras requisitadas por sua editora-chefe, porém, Junod teceu um artigo de 10 mil palavras no qual relatava o impacto que tal personalidade teve em sua vida.
O artigo virou matéria de capa, e a personalidade em questão era o ícone televisivo Fred Rogers, apresentador do longevo programa infantil “Mister Roger’s Neighborhood”.
A história de como se deu essa entrevista e a relação entre entrevistador e entrevistado é o eixo central deste “Um Lindo Dia na Vizinhança” no qual o extraordinariamente terno Fred Rogers é vivido pelo único ator que faria jus a sua personificação: Tom Hanks, também um ícone do bom-mocismo e das boas maneiras.
O nome do protagonista foi convertido para Lloyd Vogel, mas ele continua sendo um jornalista –e interpretado pelo bom ator Matthew Rhys, de “The Post-A Guerra Secreta”, de Steven Spielberg, também ao lado de Tom Hanks.
Assolado pela recente paternidade e, sobretudo, pelo retorno conflituoso de seu pai, Jerry (Chris Cooper) à sua vida –os dois não se falavam à quase quinze anos –Vogel é, acima de tudo, um repórter analítico, ferrenho e niilista, disposto a perseguir até o fim a dura realidade por trás dos fatos e das pessoas.
Quando lhe é dada a tarefa de compor um perfil do imaculado Mister Rogers, ele de pronto se propõe a descobrir o ser humano real que se esconde por trás daquelas atitudes serenas e sorridentes –uma pessoa normal, deduz ele, não pode ser assim o tempo todo.
Entretanto, Fred Rogers se revela um tópico mais complicado do que ele esperava: Com seu jeito de falar polido e pausado, seu comportamento absolutamente ímpar e cordial, Rogers não parecia, longe das câmeras, alguém que interpretava um personagem, mas a própria figura reconhecível da TV de fato. As tentativas de Vogel em fazer aflorar alguma verdade indiscreta em seus comentários ou surtir alguma reação mais áspera de seu interlocutor só enfatizam o respeito e a tranquilidade com que Rogers lidava com tudo e com todos.
Mais que isso: Deixava claro a compreensão circunspecta que esse ser humano muito especial tinha da necessidade existencial de apreciar e valorizar cada momento de vida, bem como a resoluta determinação quase pastoral em passar essa compreensão adiante.
Na inversão que parece ser o grande cerne de seu filme, a diretora Marielle Heller vai mostrando pouco a pouco a maneira com que sutilmente Rogers manipula as intenções de seu amargo entrevistador, fazendo com que seja ele quem exponha seus sentimentos e suas carências –possibilitando a Vogel encontrar assim uma redenção para seu problemático drama familiar.
Uma cena de “Um Lindo Dia na Vizinhança” é particularmente notável: Nela, Rogers e Vogel, sentados numa lanchonete conversam sobre as amenidades e os aborrecimentos. Rogers, então, propõem ao quase sempre injuriado Vogel que aproveite, ali mesmo, um minuto de silêncio de seu tempo para recordar de todas as pessoas cujo amor moldou o ser humano que ele é. E o filme, de fato, leva a cena toda a parar, a silenciar, para que esse momento passe.
O close no rosto de Tom Hanks leva o ator a olhar para a própria câmera –ou seja, para nós mesmos! –transformando esse momento em algo muito mais pessoal e subjetivo.
Certamente, não haveria de ser fácil, nem para Tom Hanks, nem para ninguém, incorporar com perfeição o carisma amoroso e a retidão moral e sentimental à toda prova que o verdadeiro Fred Rogers conseguia passar –e, embora chegue a reproduzir com minúcia estudada os trejeitos de Rogers em suas apresentações televisivas (que ganham uma espécie de sentido narrativo junto à trama), Hanks não escapa de uma afetação alienada, uma redundância de estranheza como se ao incorporar um palestrante, ele absorvesse maneirismos do expectador estupefato.
Ainda assim, é uma interpretação cheia de méritos, central a um filme sensível e feito para emocionar, e a Academia indicou Hanks ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por isso.

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