Da preciosa lição deixada por esta obra primorosa do diretor dinamarquês Gabriel Axel, pouco se vê no cinema atual: Um intimismo peculiar, uma atenção comovente aos pequenos detalhes, um preciosismo que descobrimos aos poucos, não de imediato, e que tem o gradual efeito de tornar o público, cúmplice do próprio filme.
Se em princípio “A Festa de Babette” lembra a
austeridade de Carl Theodor Dreyer, é porque, provavelmente, essa impressão
inicial é premeditada pela engenhosa narrativa, menos interessada em
brilhantismos factuais e muito mais em brilhantismos sentimentais.
Assim, portanto, começamos a história, a
acompanhar a árdua existência de abnegação das duas irmãs Filippa (Hanne
Steensgard) e Martine (Vibeke Hastrup), moradoras de uma longínqua aldeia da
Costa de Jatlond, na Dinamarca do Século XIX, filhas dedicadas ao pai, pastor
luterano da comunidade. À ele, ambas devotaram a vida, e não trata-se de
eufemismo: Dispostas a levar a palavra de Deus promulgada por seu pai, e
fazê-la valer no vilarejo onde sempre viveram, Filippa e Martine, belas na
juventude, abrem mão de seus sonhos, de suas ambições e amores para honrar sua
fé.
E a contundência dessas escolhas se dá por meio
de dois personagens que curiosamente não parecem pertencer ao gênero dramático
no qual se identificam todos os demais: O jovem oficial Lorens Lowenhielm
(Gudmar Klöving) apaixonado por Martine (e que, por isso, frequentou por um
tempo a roda de orações do pastor), em torno do qual uma atmosfera quase cômica
em suas sutilezas minimalistas parece surgir; e o famoso cantor Achille Papin
(Jean-Philippe Lafont), por sua vez parecendo ter saído de um filme musical,
artista francês em retiro breve na Costa de Jatlond, que encanta-se com a voz
prodigiosa de Filippa durante os cânticos religiosos e, em vão, tenta levá-la
para França onde certamente seria ovacionada como uma estrela.
Na primeira parte, bem mais rígida, melancólica
e pungente, somos apresentados então à essas incontornáveis renúncias impostas
às personagens, todavia, engana-se quem julgar que são Filippa e Martine as
protagonistas do filme –esse papel pertence à Babette Harsant vivida com
extraordinária excelência pela magnífica Stéphane Audran (de “O Discreto Charme
da Burguesia”).
Babette surge anos depois, em Jatlond no ano de
1817, quando Filippa e Martine já perderam o pai e se encontram em idade mais
avançada (e interpretadas por Bodil Kjer e Birgitte Federspiel, espantosamente
parecidas com as intérpretes jovens).
Fugitiva da Comuna de Paris, Babette é acolhida
pelas irmãs como um favor à Papin, e lá torna-se a imprescindível empregada
doméstica das duas senhoras.
Passados dezessete anos, Babette ganha 10.000
francos na loteria –único vínculo que havia mantido com a França, segundo ela
–e faz às duas senhoras (que, àquela altura, julgam que Babette usará o
dinheiro para deixá-las!) um pedido: Quer oferecer, ela própria, um jantar
francês em homenagem à comemoração do centenário do pai das irmãs.
Com o dinheiro, Babette obtém víveres exóticos
e iguarias inusitadas para produzir o então alardeado jantar, o que preocupa a
mentalidade fechada, ingênua e ignorante das irmãs e dos membros da comunidade
–levando todos a fazer um pacto patético e silencioso onde prometem não elogiar
a comida!
Com a data do jantar a aproximar-se, surge a
notícia de que ele contará também com a ilustre presença do envelhecido e agora
general Lowenhielm (Jarl Kulle, também ele de espantosa semelhança com a
contraparte jovem do personagem).
E assim, lentamente, quando menos o expectador
é capaz de perceber, “A Festa de Babette” começa a se tornar um filme
imensamente gracioso e encantador.
O mistério em torno da origem de Babette –que
jamais impede a plena empatia despertada pela personagem –vai, pouco a pouco,
se explicando: Ela foi uma prestigiada chef do lendário Café Anglais, em Paris.
Mais que uma cozinheira, uma artista capaz de fazer pratos de uma delícia tal
que a apreciação deles provocava um efeito de êxtase comparável ao de se estar
apaixonado!
Durante a maravilhosa cena do jantar, o General
Lowenhielm reconhece a magia dos pratos e é o primeiro a quebrar o silêncio
forçado ante a primazia gastronômica das refeições. São extasiantes aos mais
diversos sentidos, as cenas de pratos apetitosos que o diretor Axel emprega
para ilustrar esses momentos fascinantes.
Ao fim, Babette, no resgate saudosista de seus
dias como chef numa cozinha onde podia expor e expressar seu imensurável
talento, terá feito muito mais por aquela comunidade e por aqueles personagens
que poderia imaginar: Na transcendência obtida por meio do prazer ao paladar,
ela levou os personagens de seu filme a aceitar de bom grado a vida tal qual
lhes foi dada, sem ressentimentos, a amenizar desentendimentos e intrigas para
perceber o lado bom em tudo que há, e a reconhecer a beleza irrestrita da vida.
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