sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

A Festa de Babette


 Da preciosa lição deixada por esta obra primorosa do diretor dinamarquês Gabriel Axel, pouco se vê no cinema atual: Um intimismo peculiar, uma atenção comovente aos pequenos detalhes, um preciosismo que descobrimos aos poucos, não de imediato, e que tem o gradual efeito de tornar o público, cúmplice do próprio filme.

Se em princípio “A Festa de Babette” lembra a austeridade de Carl Theodor Dreyer, é porque, provavelmente, essa impressão inicial é premeditada pela engenhosa narrativa, menos interessada em brilhantismos factuais e muito mais em brilhantismos sentimentais.

Assim, portanto, começamos a história, a acompanhar a árdua existência de abnegação das duas irmãs Filippa (Hanne Steensgard) e Martine (Vibeke Hastrup), moradoras de uma longínqua aldeia da Costa de Jatlond, na Dinamarca do Século XIX, filhas dedicadas ao pai, pastor luterano da comunidade. À ele, ambas devotaram a vida, e não trata-se de eufemismo: Dispostas a levar a palavra de Deus promulgada por seu pai, e fazê-la valer no vilarejo onde sempre viveram, Filippa e Martine, belas na juventude, abrem mão de seus sonhos, de suas ambições e amores para honrar sua fé.

E a contundência dessas escolhas se dá por meio de dois personagens que curiosamente não parecem pertencer ao gênero dramático no qual se identificam todos os demais: O jovem oficial Lorens Lowenhielm (Gudmar Klöving) apaixonado por Martine (e que, por isso, frequentou por um tempo a roda de orações do pastor), em torno do qual uma atmosfera quase cômica em suas sutilezas minimalistas parece surgir; e o famoso cantor Achille Papin (Jean-Philippe Lafont), por sua vez parecendo ter saído de um filme musical, artista francês em retiro breve na Costa de Jatlond, que encanta-se com a voz prodigiosa de Filippa durante os cânticos religiosos e, em vão, tenta levá-la para França onde certamente seria ovacionada como uma estrela.

Na primeira parte, bem mais rígida, melancólica e pungente, somos apresentados então à essas incontornáveis renúncias impostas às personagens, todavia, engana-se quem julgar que são Filippa e Martine as protagonistas do filme –esse papel pertence à Babette Harsant vivida com extraordinária excelência pela magnífica Stéphane Audran (de “O Discreto Charme da Burguesia”).

Babette surge anos depois, em Jatlond no ano de 1817, quando Filippa e Martine já perderam o pai e se encontram em idade mais avançada (e interpretadas por Bodil Kjer e Birgitte Federspiel, espantosamente parecidas com as intérpretes jovens).

Fugitiva da Comuna de Paris, Babette é acolhida pelas irmãs como um favor à Papin, e lá torna-se a imprescindível empregada doméstica das duas senhoras.

Passados dezessete anos, Babette ganha 10.000 francos na loteria –único vínculo que havia mantido com a França, segundo ela –e faz às duas senhoras (que, àquela altura, julgam que Babette usará o dinheiro para deixá-las!) um pedido: Quer oferecer, ela própria, um jantar francês em homenagem à comemoração do centenário do pai das irmãs.

Com o dinheiro, Babette obtém víveres exóticos e iguarias inusitadas para produzir o então alardeado jantar, o que preocupa a mentalidade fechada, ingênua e ignorante das irmãs e dos membros da comunidade –levando todos a fazer um pacto patético e silencioso onde prometem não elogiar a comida!

Com a data do jantar a aproximar-se, surge a notícia de que ele contará também com a ilustre presença do envelhecido e agora general Lowenhielm (Jarl Kulle, também ele de espantosa semelhança com a contraparte jovem do personagem).

E assim, lentamente, quando menos o expectador é capaz de perceber, “A Festa de Babette” começa a se tornar um filme imensamente gracioso e encantador.

O mistério em torno da origem de Babette –que jamais impede a plena empatia despertada pela personagem –vai, pouco a pouco, se explicando: Ela foi uma prestigiada chef do lendário Café Anglais, em Paris. Mais que uma cozinheira, uma artista capaz de fazer pratos de uma delícia tal que a apreciação deles provocava um efeito de êxtase comparável ao de se estar apaixonado!

Durante a maravilhosa cena do jantar, o General Lowenhielm reconhece a magia dos pratos e é o primeiro a quebrar o silêncio forçado ante a primazia gastronômica das refeições. São extasiantes aos mais diversos sentidos, as cenas de pratos apetitosos que o diretor Axel emprega para ilustrar esses momentos fascinantes.

Ao fim, Babette, no resgate saudosista de seus dias como chef numa cozinha onde podia expor e expressar seu imensurável talento, terá feito muito mais por aquela comunidade e por aqueles personagens que poderia imaginar: Na transcendência obtida por meio do prazer ao paladar, ela levou os personagens de seu filme a aceitar de bom grado a vida tal qual lhes foi dada, sem ressentimentos, a amenizar desentendimentos e intrigas para perceber o lado bom em tudo que há, e a reconhecer a beleza irrestrita da vida.

Um milagre.

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