quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Tenet


 Existem meios distintos de se abordar “Tenet”: Para a maioria, ele é visto como o filme de Christopher Nolan que finalmente fracassou (tendo sido lançado nos cinemas em meio ao desafortunado cenário da pandemia de 2020) culminando num rumo inevitável pavimentado por sua ambição, pretensão e megalomania.

Entretanto, há algo de ranzinza, invejoso e até rancoroso nessa avaliação: “Tenet” padece de todas as características positivas e negativas do cinema de Nolan, mas é um gesto de deliberada má vontade não reconhecer o fascínio provocado por sua exuberância, nem o assombro acarretado pelo manejo espetacular de seu vasto aparato técnico.

É desafiador apreender “Tenet” numa mera sinopse ou explicação: Nolan ampara sua narrativa em percepções do cinema comercial, em arquétipos que nada mais são do que portais para um de seus mais imponderáveis projetos.

Se existem dois trabalhos pregressos de Nolan que assombram “Tenet” o tempo todo, eles provavelmente são “Amnésia” e “A Origem”: Do primeiro, Nolan pega seu insistente objetivo de inverter a percepção do tempo, e dessa inversão fazer a fonte de sua narrativa. Do segundo, ele extrai a estética, a roupagem, o estilo aventuresco de ação épica e global com traços de filme de espionagem, e possivelmente a intenção de repetir um fenômeno bastante singular entre público e crítica.

Os delírios de Nolan se iniciam numa já estupenda cena do que aparenta ser um atentado na Ópera de Kiev: Agentes interferem na ação de uma espécie de grupo terrorista, entre esses homens misteriosos está o protagonista anônimo vivido por John David Washington (de “Infiltrado Na Klan”). A missão –de resgatar um agente duplo cuja captura o atentado serviria para acobertar –dá errado e ele... morre?!

Talvez sim, talvez não; Ele acorda afirmando que “as pílulas suicidas não funcionaram”... mas, mesmo isso é uma informação incerta –o que poderia indicar que o filme todo pode ou não se passar num pós-morte! A partir daí, as coisas não facilitam. O sacrifício dele o qualifica para subir de nível no ofício de agente secreto que aparentemente desempenhava –instrução recebida numa breve aparição de Martin Donovan, ator que Nolan usou em “Insônia”. Ele –vamos chamá-lo de O Protagonista –é então designado para algo insólito: Um armamento de características improváveis é rastreado pela CIA; tratam-se de projéteis de balas que, ao invés de se chocarem contra um pedaço de muro, retrocedem (inclusive, revertendo também o dano feito ao concreto!). São peças e acessórios encontrados cuja radiação inverte seu fluxo do tempo, sua entropia. A teoria: Tais utensílios veem do futuro, com sua inversão do tempo realizada por alguma tecnologia, e são indícios de uma guerra –talvez, a Terceira Guerra Mundial! –que o Protagonista tem como missão impedir.

A pista dessa inusitada munição o leva à enigmática Priya (Dimple Kapacia), uma traficante internacional de armas na Índia, e depois, a Sator (Kenneth Branagh, espantosamente ameaçador), um perigoso traficante armamentista soviético de quem ele se aproxima por meio da torturada esposa dele, Kat (a interessantíssima Elizabeth Debicki, de “Guardiões da Galáxia-Vol. II”).

Contudo, tal descrição não chega nem perto de ilustrar a complexidade pulsante que predomina na narrativa, ou na trama fragmentada e mirabolante ou mesmo na execução densa e tecnicamente arrojada de “Tenet”: Christopher Nolan, como roteirista e como diretor, desenvolve um conceito onde não apenas as pistas e informações nunca bastam para esclarecer os acontecimentos intrincados por completo, como também, usa de expedientes presentes no próprio enredo para alterar o fluxo do tempo e dos acontecimentos.

Vamos ver se é possível explicar: Dentro de “Tenet” existem personagens que, irradiados por essa tecnologia, têm sua entropia alterada, e vivenciam o tempo em ordem oposta –assim, enquanto alguns personagens agem e fazem as coisas normalmente, outros, paralelos a eles, estão experimentando tudo em ordem invertida (e para eles é a realidade que transcorre de trás para frente!). Lá pelas tantas, na sucessão dessa trama já não muito simples de ser acompanhada, eis que os personagens do Protagonista, Kat e Neil (Robert Patinson, ótimo) usam dessa tecnologia e passam a vivenciar o tempo invertido; e todos os eventos do filme até então vão transcorrendo para eles ao inverso, passando por cenas do filme que testemunhamos desde o começo, até regressar em dias e chegar a situações que surgiram aqui e ali como flashbacks. Parece confuso? Sim, e é muito! É necessário força de vontade para compreender essa estripulia narrativa de Nolan, e quase nunca isso é possível, restando ao expectador somente desencanar e acompanhar o turbilhão de acontecimentos na esperança de que, se nós, como público, nos perdemos, ao menos Nolan, como realizador, não se perca.

Felizmente, ele retribui a atenção que dedicamos à essa sua obra até o final com uma construção primorosa de cenas onde se evidencia os valores elevadíssimos da direção de fotografia (a cargo do talentoso Hoyte Van Hoytema), da montagem prodigiosa de Jennifer Lame (editar todas aquelas sequências caóticas de ação, com trechos convencionais e invertidos e ainda torná-los inteligíveis, resultou num trabalho que isoladamente por ser chamado de obra-prima!) e dos nunca menos que assombrosos efeitos visuais.

Os críticos mais ferrenhos e sisudos insistem que Christopher Nolan, aqui, deu um salto demasiadamente avançado em direção à mescla de cinema cerebral, mas de propensões comerciais, com a qual ele vinha moldando suas obras. E isso pode, de fato, soar elitista, narcisista até, mas o cinema de Nolan não tem um pingo de comodismo nem de conformidade e esse é seu mérito mais salutar: Enxergar, mesmo em meio ao intoxicante ambiente de convencionalismo hollywoodiano, engrenagens pelas quais a luz refletida na tela pode ainda alcançar áreas inexploradas de nossas mentes e de nossos sonhos, e lá nos surpreender.

Ele às vezes se envaidece com o próprio arrojo, mas eu ainda aplaudo Christopher Nolan.

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