quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Pelos Caminhos do Inferno


 Lembrado especialmente por seu trabalho em “Rambo-Programado Para Matar”, o diretor australiano Ted Kotcheff demonstrou capacidade e habilidade (além de insuspeita versatilidade) em vários outros projetos, infelizmente bem menos reconhecidos que a aventura que lançou Stallone ao estrelato.

Certamente a obra que o colocou no radar de Hollywood veio a ser este sufocante conto sobre ciclos viciosos que ele realizou em sua Austrália natal, parte da profusão de obras cheias de identidade e personalidade que surgiram abundantes por lá nos anos 1970 e 80, integrando o movimento hoje conhecido como ozploitation.

Ao iniciar o filme, somos testemunhas da insatisfação crônica do Prof. John Grant (Gary Bond) para com sua situação presente: Lecionando crianças interioranas numa estação no meio do nada, ele conta as horas e os minutos para a chegada de suas férias, quando planeja partir de lá num trem a caminho da capital, Sydney, onde sonha encontrar a namorada e com ela, de repente, partir para a Inglaterra.

Contudo, as paradas inevitáveis de trens, o obrigam a hospedar-se provisoriamente numa cidadezinha em algum lugar em meio ao trajeto, de nome Yabba, habitada por caipiras sintomaticamente hospitaleiros, sujos e beberrões; o lugarejo e seus habitantes de pronto suscitam a irritação em Grant, tão superior se sente e tão pretensioso de ver-se longe de tudo aquilo ele está. Mas, a narrativa de Kotcheff corresponde a um castigo divino: Ao pernoitar num hotel, crente de que partiria no dia seguinte, Grant vai a um bar local e lá se embebeda junto do xerife, para logo em seguida convencer-se de participar de jogos de apostas em andamento ali por perto e, com isso, perder todo o dinheiro que tem.

Gradualmente convertido num dos indivíduos que ali vivem –suas roupas brancas vão ganhando a mácula da sujeira, seus modos rígidos vão se tornando desmazelados, e suas atitudes vão espelhando cada vez mais os violentos bêbados locais –Grant encontra um senhor que lhe oferece bebida e pouso em sua casa; e, nela, sua filha oferece à Grant também sexo, o que aparentemente ela oferece a todo homem do lugar (!).

“Pessoas de bolsos vazios conseguem sobreviver relativamente bem em Yabba” é o que lhe conta o médico vivido por Donald Pleasence, que lhe recebe em sua casa nos dias tumultuados que se seguem. Ele é um reflexo de Grant: Também escolado, também vindo da cidade grande e, provavelmente, também dono de sonhos mais ambiciosos no passado, mas capturado em Yabba pela bebedeira constante à que são submetidos pelos insistentes convites hospitaleiros, enredado pela amizade viril com os brutamontes locais que o fazem parte dos hábitos bizarros como a caçada à cangurus (em cenas reais feitas de forma francamente chocante).

Logo, Grant percebe que, do alto de sua presunçosa superioridade, não se deu conta de que eles o prenderam ali também: Sem dinheiro para sua própria independência de ir e vir,morando com o médico num barraco caindo aos pedaços, fazendo parte de sua rotina insensata de loucuras, bebedeiras e farras inconsequentes, e dependendo da boa vontade daqueles que não cessam de lhe empurrar cerveja goela abaixo, Grant não consegue, durante dias, desvencilhar-se daquela circunstâncias –porque os detalhes nunca lhe ajudam; porque nunca a situação lhe parece urgente o bastante para tratá-la com seriedade; e porque a embriaguez não lhe permite um pensamento muito austero acerca disso.

Em suma: Uma armadilha onde a vítima parece ser seu próprio futuro.

Mesmo em um momento, quando um instante de epifânia o leva a partir dali numa carona, eis que o destino conspira contra o protagonista, levando-o, por um acordo mal-entendido com um caminheiro, a ser levado de volta para Yabba, ao invés de para longe dela.

Uma reflexão claustrofóbica e atordoante sobre a bestialização do ser humano –tão mais assombrosa por cumprir sua promessa ao mostrar com propriedade um indivíduo urbano, asseado e vistoso converter-se por forças externas num bêbado deplorável e cambaleante –o filme de Ted Kotcheff vale-se magnificamente bem dos elementos visuais que caracterizavam o cinema australiano de então: As paisagens grandiosamente desoladas do ‘outback’, as regiões áridas com muita poeira, os ambientes paupérrimos e em constante degradação, e uma representação quase sensorial do calor do deserto, traduzido em cena pelos rostos sempre umedecidos de suor, pelos filtros amarelados ou avermelhados de câmera e pelos mosquitos. Recursos inteligentes e empregados com brilho que não tardam a nos deixarem tão perplexos quanto o próprio personagem metido nessa enrascada.

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