sábado, 4 de outubro de 2025

Feliz Ano Velho


 No premiado, “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, já perto do final, vemos Eunice Paiva (Fernanda Torres) e seus filhos, já crescidos, entre os quais, Marcelo Rubens Paiva que pode ser visto numa cadeira de rodas. A história de como ele chegou nessa condição pode ser conferida, por sua vez, neste clássico do cinema nacional dos anos 1980, adaptado livremente do livro que ele próprio escreveu.

Aos vinte anos, Mário, interpretado por Marcos Breda (a mudança de nome do protagonista foi uma das poucas alterações que o material sofreu em relação à fonte literária) sofre um acidente, ainda durante o período de Reveillon, que o deixa tetraplégico. A dura adaptação à essa nova realidade é intercalada por sofridas e comiserativas visitas à clínica de fisioterapia e reabilitação, e por recordações do passado quando foi um estudante engajado, cultural e politicamente ativo. As sequências no presente –isto é, no ano de 1980, quando tudo se sucede –são registradas em depressivos e estéreis tons de azul e branco (até mesmo os atores, é possível perceber, são maquiados com pesada coloração branca); já, as lembranças do período anterior ao acidente, são mostradas em cores quentes, num recurso inventivo e vibrante da fotografia assinada por César Charlone (que depois seria até mesmo indicado ao Oscar por “Cidade de Deus”).

Na clínica, Mário tem contato com outros cadeirantes, alguns aceitaram sua condição, outros expressam uma indignação diante do destino cruel que ele mesmo está a um passo de sentir. Lá também, ele conhece Beto (Marco Nanini, sempre fantástico), um artista inquieto com quem compartilha visões oscilantes do mundo e da vida; e Angela, uma bailarina perfomática de atitude inicialmente sombria, com quem aos poucos Mário cria um vínculo.

A narrativa do diretor Robert Gervitz (de “Jogo Subterrâneo”), propositadamente estabelece um contraponto entre essa difícil realidade e o período em que Mário ainda estudava em São Paulo, quando morou na mesma casa alugada com os amigos Klauss (Carlos Loffler, de “Navalha Na Carne”), Gorda (Júlio Levy, de “A Dama do Cine Shangai”) e Soninha (Bety Gofman, de “Os Trapalhões no Auto da Compadecida”), integrou um arremedo de banda de rock, participou ativamente de protestos estudantis e envolveu-se romanticamente com a encantadora Ana –e para efeitos de infindáveis simbologias e interpretações, tanto Ana (no período solar e colorido) quanto Angela (no período sombrio e monocromático), são ambas interpretadas pela mesma Malu Mader.

Eunice Paiva, neste filme, é vivida por Eva Wilma, cujos momentos em cena são nunca menos que brilhantes; já as lembranças enevoadas do pai (o ex-deputado Rubens Paiva, preso e assassinado durante a Ditadura Militar) trazem o ator Odilon Wagner, uma presença tão calorosa quanto reconfortante.

Exemplar luminoso do Novo Cinema Paulista de então –ao lado de obras claudicantes em qualidade, mas, engajadas em termos de iniciativa e inovação como “Onda Nova”, “Filme Demência”, “Brasa Adormecida” e “Besame Mucho” –“Feliz Ano Velho” é uma obra sensível e poética a brotar num cenário cinematográfico onde o Brasil procurava tatear uma linguagem moderna, inspirada e criativa. Por esse arrojo desigual num panorama de pornochanchadas e produções irregulares, o filme de Gervitz recebeu nada menos do que sete prêmios (Prêmio Especial do Júri, Melhor Filme do Júri Popular, Melhor Roteiro, Melhor Fotografia, Melhor Figurino, Melhor Som e Menção Honrosa Para a Música) no Festival de Gramado de 1988.

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