terça-feira, 2 de junho de 2020

Filme Demência

A obra mais pessoal de Carlos Reichenbach é uma engajada versão de “Fausto”, poema gótico no qual Goethe ilustra um protagonista que vende a alma ao Diabo.
Com efeito, é esse o nome do personagem interpretado por Ênio Gonçalves, um homem atormentado pela falência em todos os âmbitos de sua vida –desde a fábrica de cigarros herdada do próprio pai, até o relacionamento em frangalhos com a esposa (Imara Reis).
Quando Fausto busca uma compensação carnal para os infortúnios de seu dia-a-dia –expondo a nudez esplendorosa da mulher ao cortar sua camisola com uma lâmina de barbear –a esposa, amargurada por horas e horas de negligência matrimonial o rejeita. Indignado, o protagonista sai pela noite paulista afora certo de que, de alguma maneira, cometerá algum excesso: Ele leva consigo uma arma em punho.
Nesse decurso –no qual se vê ocasionalmente acompanhado do satânico Mefistófeles (Emílio Di Biasi) aparecendo aqui e ali, transfigurado em diferentes personas, porém, sempre presente, como uma mosca a farejar a decomposição de sua vida –Fausto singra os becos decadentes de São Paulo, a Boca do Lixo, o centro (onde a desigualdade prevalece), os prostíbulos, as boates de striptease, os inferninhos. Lá, ele encontra a fauna imoral e dantesca que essa realidade amarga atrai e cria; traficantes, prostitutas, viciados, desiludidos.
Um vez ou outra, Fausto encontra conhecidos, amigos que, na narrativa que Reinchenbach organiza, nada mais são do que espelhos que refletem a decadência dele próprio, e que, numa compensação fugidia e final, lhe fornecem ouvidos para declamar sua injúria.
Em algum momento, o delirante protagonista identifica alívio e alento em sua via sacra de martírio e degradação, na forma de imagens onde o cenário vil e seus habitantes deturpados são contrapostos pela visão de uma menina numa praia paradisíaca.
Quem é essa menina? E que praia é essa? Onde ela fica? O que significam?
São perguntas cuja resposta, subitamente, passa a nortear a vida já sem um norte de Fausto.
Alegoria deprimente e opressiva sobre a derrocada da vilania, o filme de Reichenbach só não se sai melhor em sua audaciosa ilustração metafórica porque no surrealismo da trajetória que relata ele termina por abraçar os elementos mais deploráveis e despojados de seu minguado orçamento, de sua limitada equipe técnica e dos recursos insuficientes para a empreitada pretensiosa que vislumbra seu simbólico roteiro.
Ao seu modo, “Filme Demência” –cujo título é um anagrama para o termo ‘filme de cinema’ –pode ser visto como um compêndio da carreira de Reichenbach, da mesma forma que, guardadas as devidas proporções, “Persona” também vinha a ser um compêndio da carreira de Bergman: Fausto, seu protagonista, passeia pela Boca do Lixo –onde Reichenbach iniciou sua carreira cinematográfica realizando exemplares da pornochanchada (como “A Ilha dos Prazeres Proibidos”, “Império do Desejo” ou “Extremos do Prazer” e outros) –e encontrou um meio de introduzir em suas obras, mesmo as de cunho essencialmente popularesco, um elemento questionador, reflexivo para com suas circunstâncias sociais, políticas e culturais. Aos poucos, em trabalhos como “Anjos do Arrabalde” e “Amor, Palavra Prostituta”, ele foi dominando um cinema proletário, de intensa observação moral, com frequência lançando um olhar particular sobre os desdobramentos machistas na relação homem-mulher (dinâmica essa que dá o estopim à premissa de “Filme Demência”). Também existem reflexos pessoais na abordagem ou mesmo na menção à falência financeira dos negócios familiares: O próprio Reichenbach viveu tal experiência com sua família que teve de enfrentar um processo de falência.
Por essa execução personalíssima, Reichenbach colheu os louros da premiação como Melhor Direção, Melhor Montagem, Melhor Ator Coadjuvante (para Emílio Di Biasi), Melhor Atriz Coadjuvante (para Imara Reis) e o Prêmio da Crítica no Festival de Gramado 1986, além de vencer Melhor Ator (Ênio Gonçalves) e Melhor Trilha Sonora no Rio Cine Festival de 1987 e o Prêmio de Inovação no Festival de Rotterdan.

Nenhum comentário:

Postar um comentário