A obra mais pessoal de Carlos Reichenbach é uma
engajada versão de “Fausto”, poema gótico no qual Goethe ilustra um
protagonista que vende a alma ao Diabo.
Com efeito, é esse o nome do personagem
interpretado por Ênio Gonçalves, um homem atormentado pela falência em todos os
âmbitos de sua vida –desde a fábrica de cigarros herdada do próprio pai, até o
relacionamento em frangalhos com a esposa (Imara Reis).
Quando Fausto busca uma compensação carnal para
os infortúnios de seu dia-a-dia –expondo a nudez esplendorosa da mulher ao
cortar sua camisola com uma lâmina de barbear –a esposa, amargurada por horas e
horas de negligência matrimonial o rejeita. Indignado, o protagonista sai pela
noite paulista afora certo de que, de alguma maneira, cometerá algum excesso:
Ele leva consigo uma arma em punho.
Nesse decurso –no qual se vê ocasionalmente
acompanhado do satânico Mefistófeles (Emílio Di Biasi) aparecendo aqui e ali,
transfigurado em diferentes personas, porém, sempre presente, como uma mosca a
farejar a decomposição de sua vida –Fausto singra os becos decadentes de São
Paulo, a Boca do Lixo, o centro (onde a desigualdade prevalece), os
prostíbulos, as boates de striptease, os inferninhos. Lá, ele encontra a fauna
imoral e dantesca que essa realidade amarga atrai e cria; traficantes,
prostitutas, viciados, desiludidos.
Um vez ou outra, Fausto encontra conhecidos,
amigos que, na narrativa que Reinchenbach organiza, nada mais são do que
espelhos que refletem a decadência dele próprio, e que, numa compensação
fugidia e final, lhe fornecem ouvidos para declamar sua injúria.
Em algum momento, o delirante protagonista
identifica alívio e alento em sua via sacra de martírio e degradação, na forma
de imagens onde o cenário vil e seus habitantes deturpados são contrapostos
pela visão de uma menina numa praia paradisíaca.
Quem é essa menina? E que praia é essa? Onde
ela fica? O que significam?
São perguntas cuja resposta, subitamente, passa
a nortear a vida já sem um norte de Fausto.
Alegoria deprimente e opressiva sobre a
derrocada da vilania, o filme de Reichenbach só não se sai melhor em sua
audaciosa ilustração metafórica porque no surrealismo da trajetória que relata
ele termina por abraçar os elementos mais deploráveis e despojados de seu
minguado orçamento, de sua limitada equipe técnica e dos recursos insuficientes
para a empreitada pretensiosa que vislumbra seu simbólico roteiro.
Ao seu modo, “Filme Demência” –cujo título é um
anagrama para o termo ‘filme de cinema’ –pode ser visto como um compêndio da carreira
de Reichenbach, da mesma forma que, guardadas as devidas proporções, “Persona”
também vinha a ser um compêndio da carreira de Bergman: Fausto, seu
protagonista, passeia pela Boca do Lixo –onde Reichenbach iniciou sua carreira
cinematográfica realizando exemplares da pornochanchada (como “A Ilha dos
Prazeres Proibidos”, “Império do Desejo” ou “Extremos do Prazer” e outros) –e
encontrou um meio de introduzir em suas obras, mesmo as de cunho essencialmente
popularesco, um elemento questionador, reflexivo para com suas circunstâncias
sociais, políticas e culturais. Aos poucos, em trabalhos como “Anjos do Arrabalde” e “Amor, Palavra Prostituta”, ele foi dominando um cinema
proletário, de intensa observação moral, com frequência lançando um olhar
particular sobre os desdobramentos machistas na relação homem-mulher (dinâmica
essa que dá o estopim à premissa de “Filme Demência”). Também existem reflexos
pessoais na abordagem ou mesmo na menção à falência financeira dos negócios
familiares: O próprio Reichenbach viveu tal experiência com sua família que
teve de enfrentar um processo de falência.
Por essa execução
personalíssima, Reichenbach colheu os louros da premiação como Melhor Direção,
Melhor Montagem, Melhor Ator Coadjuvante (para Emílio Di Biasi), Melhor Atriz
Coadjuvante (para Imara Reis) e o Prêmio da Crítica no Festival de Gramado
1986, além de vencer Melhor Ator (Ênio Gonçalves) e Melhor Trilha Sonora no Rio
Cine Festival de 1987 e o Prêmio de Inovação no Festival de Rotterdan.
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