No início desta animação dirigida por Martin
Rosen, vemos uma fábula explicar a razão e a condição da fragilidade dos
coelhos: Sua divindade criou animais para usufruir do mundo e seu sustento,
contudo, o coelho inspirou irritação nos demais por sua fome desmesurada e
sua capacidade de reproduzir-se, extinguindo assim com campos verdejantes
inteiros rapidamente.
Indignada com o coelho, a divindade atribuiu
aos outros animais dentes, garras e ferocidade para caçá-lo mundo afora. A
divindade, entretanto, arrependeu-se e decidiu dar ao coelho alguma dádiva com
a qual defender-se do jugo de criaturas tão superiores, mas, o coelho estava
tão assustado que tinha se enterrado parcialmente num buraco do chão.
“Abençoe-me daí mesmo!” disse o coelho quando a
divindade pediu para que saísse de seu esconderijo.
Assim, o coelho –e todos de sua espécie –foi
abençoado com seu rabo (que, dizem, dá sorte) e com pernas traseiras poderosas,
capazes de faze-lo correr mais rápido que qualquer um.
Esse prólogo define bem a circunstância que
paira sobre os quase indefesos
personagens desta notável animação: A aflição de saber-se â mercê de qualquer
outra criatura, e de compreender que, para sobreviver, precisa ser prudente a
ponto de estar sempre um passo a frente de todos.
Dessa forma, somos apresentados aos dois
coelhos irmãos que protagonizam o filme, Avelã (voz de John Hurt) e Fiver (voz
de Richard Briers): O primeiro, mais velho, nutre um sentimento paternalista em
relação ao irmão e a todos que se prestam a acompanhá-lo; o segundo, arredio e
assustado, tem visões (nunca devidamente explicadas) que lhe confrontam com
premonições do que virá.
A mais recente dá conta de que a clareira onde
seu grupo vive está com os dias contados –e que tudo haverá de terminar em
sangue se ali ficarem!
Após algum período de deliberação (onde sua
intenção de partir invariavelmente se choca com o pragmatismo dos céticos
interessados em ficar), Avelã e Fiver, ao lado do autoritário, porém, sensato
Cabeludo (voz de Michael Grahan Cox), se juntam a outros cinco coelhos para
empreender uma arriscada jornada em busca de um novo lugar para viver.
É quando o trabalho de Martin Rosen começa a
mostrar a que veio, em sua proposta, certamente já embutida no conto original
de Richard Adams do qual foi adaptado, de desconcertar o expectador: A primeira
parte de “Watership Down” apresenta o expectador às suas criaturas
protagonistas, coelhinhos fofos desenhados com o minimalismo necessário para
despertar genuína compaixão por esses animais. Contudo, tão logo a premissa
básica se engatilha, a narrativa de Rosen começa a impor a esses adoráveis
personagens a ameaça, o fatalismo e o perigo inerentes ao mundo real que agora
terão de enfrentar.
E o filme de Rosen, deveras, não fica só na
sugestão: A medida que se distanciam cada vez mais de seu local de partida
–ficando claro que, para ele, já não há mais chance de retorno –os coelhinhos
se veem diante de atribulações mortais, como os automóveis que podem
atropela-los na auto-estrada que têm de atravessar, ou a águia que termina por
capturar um deles num momento de perigosa distração.
O avanço do filme vai destacando o protagonismo
de Avelã e Cabeludo, os líderes de fato do grupo que se forma. Eles conduzem os
coelhos a uma campina onde encontram outros coelhos, pouco confiáveis, e
excessivamente displicentes em sua proximidade com os seres humanos; é nesse
entrecho que Cabeludo cai numa armadilha para roedores –num dos momentos mais
chocantes da animação –e escapa por muito pouco!
Prosseguindo em sua jornada –e encontrando pelo
caminho o coelho Azevin (voz de Ralph Richardson), todo machucado e
ensanguentado –eles descobrem uma fazenda onde um cão, feroz e acorrentado, e
um gato, potencialmente mortífero, vigiam uma gaiola cheia de coelhas.
Ao encontrar refúgio numa montanha, bem como um
aliado voador –o pássaro Guia (voz de Zero Mostel) que faz amizade com eles
enquanto cura uma asa machucada –os coelhos decidem executar um plano: Como sua
comunidade não dispõe de fêmeas (e não podem, portanto, se reproduzir), Avelã e
os outros resolvem tentar libertar as coelhas da fazenda.
O fracasso do plano –que resulta na quase morte
de Avelã –conduz a outro estratagema: Tentar libertar, desta vez, as fêmeas que
estão em poder do maligno Erva Daninha (voz de Harry Andrews), um coelho
grande, velho e ameaçador, governante de uma enorme toca patrulhada por toda
uma horda sob seu comando; foi de seu reduto que Azevin escapou à custa de
muito flagelo e sofrimento.
Para essa empreitada –na qual Cabeludo irá se
arriscar infiltrando-se nas fileiras dos capangas de Erva Daninha –o auxílio
alado de Guia será fundamental.
Deliberadamente longe de ser uma animação nos
moldes da Disney –embora no início ele enganosamente pareça ser, sobretudo, em
comparação com “Bambi” –“Watership Down” substitui a leveza pueril e a
ingenuidade conceitual por tensão, sangue e violência sem restrições, com base
numa animação certamente datada para os padrões digitais de hoje, mas, rica em
aguçada percepção artística e primorosa na concepção visual de seus
personagens.
É uma mensagem bastante
pertinente, válida e, diante das circunstãncias, original: De que o mundo real,
mesmo que mascarado por elementos que remetem à inocência infantil, guarda
armadilhas e desafios implacáveis e impiedosos àqueles que o subestimarem.
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