domingo, 10 de maio de 2020

Jogo Subterrâneo

Em meados de 2009, o ator Felipe Camargo ganhou uma notável sobrevida em sua carreira –prejudicada, na década anterior, pelos escândalos do tumultuado casamento com a atriz Vera Fischer –quando participou da minissérie “Som & Fúria”, de Fernando Meirelles. Antes disso, ele já havia estado presente neste notável drama urbano de 2005 que contribuiu muito para público e crítica voltarem a enxergá-lo como o bom ator que é.
Na trama, ele vive Martin, pianista de um bar noturno cujos dias solitários são preenchidos com um jogo estranho e tipicamente doentio: Ele escolhe um percurso aleatório nas entrecruzadas linhas labirínticas do metrô de São Paulo e, durante a viagem, procura por uma bela mulher que lhe chame a atenção e faça exatamente a mesma rota.
Tal mulher ele não aborda; apenas a segue, imaginando qual seria seu nome e suas motivações, na esperança de que ela siga pelo mesmo caminho. Essa mulher, deduz Martin, nessa espécie de ‘jogo de sorte’, seria então a mulher de sua vida.
No entanto, pela improbabilidade de sua aposta e pela natureza desolada de sua tática, Martin nunca consegue nada além da suposições que só o condicionam à solidão da vida na cidade grande.
Em algum momento de suas idas e vindas, ele conhece três diferentes mulheres que lhe dão certa perspectiva de sua existência incerta: São elas Tânia (Daniela Escobar), Laura (Julia Lemmertz) e Ana (Maria Luisa Mendonça).
Com Tânia ele se encontra durante uma crise que acomete a filha autista dela no metrô. Eles se envolvem, ainda que Martin não saiba ao certo a convicção de suas intenções com Tânia.
Com Laura, ele se cruza eventualmente e, numa troca inesperada de palavras, descobre ser ela cega (!) e escritora; as conversas que ele passa a ter com Laura –embora sempre dissertadas em terceira pessoa –são uma cada vez mais dolorosa auto-reflexão.
Por fim, ele conhece Ana em meio à uma aparente fuga dela. Embora atraente, a garota se apresenta no vagão do metrô arredia, assustada e paranóica.
Envolta em mistério, ela enreda Martin num relacionamento dúbio e muito nebuloso, alimentado talvez por essa mesma dúvida. Porém, com o tempo, é exatamente o pouco que sabe a respeito dela que parece começar a minar a relação.
Baseado num conto do escritor argentino Julio Cortázar, o filme dirigido por Roberto Gervitz faz lembrar um pouco os contundentes contos de tormento romântico de Wong Kar-Way na observação desoladora que tece das trajetórias urbanas. No enredo que busca construir com uma dispersão que ocasionalmente lhe prejudica, o roteiro assinado por Jorge Durán e pelo próprio Gervitz justapõe o protagonista sozinho e deprimido às mulheres que lhe oferecem facetas distintas no entendimento da vida –Tânia, junto da filha, lhe sinaliza com uma vida em família pronta da qual Martin só se sente maduro o suficiente para arcar quando já é tarde demais; e isso leva a própria Tânia a rejeitá-lo. Laura (simbolicamente cega como a própria Justiça) é a consciência, o anjo que verifica a bússola moral em seus atos e o demônio que aceita os excessos em suas escolha; e com o tempo, Martin se descobre capaz de nortear os próprios julgamentos sem precisar das palavras dela. Já, Ana (a única personagem da qual a narrativa se permite tanta atenção quanto Martin) é o indivíduo perdido que reflete o seu próprio desespero.
Uma acompanhante de luxo –atividade que ela, por razões óbvias, reluta em revelar à Martin e, por consequência, ao expectador –ela aos poucos vai fornecendo, ao longo da trama, informações que nos permitem saber as circunstâncias tumultuadas nas quais ela adentrou a história (possibilitando assim a entrada em cena da personagem vivida pela sempre estonteante Maitê Proença). Ana também é o único personagem além de Martin que se ocupa de uma espécie de jogo onde parece enganar a si mesma: Ela deseja voltar (ou fugir) para um lugar de sua infância, Porto Desejado, sobre o qual ela ouviu dizer, sem muita certeza, e do qual ninguém tem qualquer informação –ou confirmação da existência.
O cenário urbano, que predomina na maior parte do filme, surge convertido quase numa prisão que oprime esses dois perplexos protagonistas, Martin e Ana. Daí o metrô, a surgir em sua realidade com a promessa (ou o consolo) do movimento –ainda que, no fim, não gere nenhum deslocamento de fato, o quê os leva ao jogo subterrâneo (o sonho) no qual almejam conseguir o que não têm.

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