Ken Russell desafia o expectador a esboçar um
gesto de compreensão para com seu filme (talvez, o mais impactante e
perturbador dentre todas as obras tão infames que ele concebeu), para com a
história obscura e aflitivamente real que ele conta, e as implicações à que ela
se presta.
Sim, pois “Os Demônios” não é um trabalho que
busca o choque por sua simples razão de ser, não é sensacionalista, nem
gratuito (embora, por vezes, pareça!).
O diretor inglês nos transporta para a França
de 1604, mais precisamente a cidade de Loudun, onde a ideologia do padre Urbain
Grandier (Oliver Reed, excelente) bate de frente com as intenções da coroa:
Loudun foi praticamente a última grande cidade francesa a preservar suas
fortificações –muros imensos e sólidos que os protegiam das hostilidades
exteriores –o quê a tornava uma fortaleza que a protegia, inclusive, de uma
eventual intervenção feita pelo regime católico adotado pela própria monarquia.
A situação de Loudun era incomum; seu governador havia falecido, e o padre
Grandier, respeitado e proeminente na região, tomou provisoriamente seu lugar
até que um novo governador fosse indicado pelo povo. Até lá, Grandier não
pretendia ceder às exigências da coroa que, sob pressão dos inquisidores,
ordenava a destruição das fortificações de Loudun.
Um impasse político se formava. A saída para
essa questão foi encontrada da maneira mais sórdida e covarde: A partir do
pouquíssimo confiável depoimento da madre-superiora do convento local (Vanessa
Redgrave, num papel tão perturbador quanto magistral), suspeita de sofrer
possessões demoníacas incitadas pelo próprio padre Grandier, os inquisidores
encontram pretexto para mover um julgamento. Na verdade, tais possessões eram
surtos ligeiramente psicóticos provocados por seu desejo sexual por ele, e
amplificados por uma profunda mescla de superstição e ignorância, o quê, inclusive,
acaba influenciando também as outras freiras do convento, dando progressão a um
surto generalizado de loucura –e o diretor Ken Russell joga por terra a idéia,
difundida em outros filmes, de que membros do clérigo (madre, sacerdotes e
freiras em geral) sejam pessoas altruítas, imaculadas e angelicais. Na verdade,
como bem explora esta brilhante e exasperante observação acerca da Inquisição,
os indivíduos enviados para os conventos eram normalmente os párias das
famílias, aqueles e aquelas dos quais os pais muitas vezes queriam se livrar. O
quê tornava sua crença, assim, um terreno fértil para a histeria coletiva.
Esse mote serve para Russell elaborar algumas
das mais atrozes cenas que o cinema já permitiu, surgindo materializadas em tom
quase inacreditável na segunda metade da obra, dando vazão a imagens
francamente profanas que dificilmente abandonarão a memória do expectador. “Os
Demônios” para se ter uma idéia, é uma das inspirações de Willian Friedkin para
realizar “O Exorcista”.
Dentro da convicção de seu
estilo e de sua muito bem embasada crítica aos dogmas religiosos que engessam a
reflexão, Russell leva a mordacidade a níveis inexplorados.
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