quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Os Trapalhões No Auto da Compadecida


 Prova do empenho dos Trapalhões em querer fazerem-se cinematograficamente relevantes, em determinado ponto de sua trajetória (1987, no caso), foi este projeto onde adaptavam ao seu próprio jeito e estilo a celebrada peça de Ariano Suassuna –já adaptada anteriormente para o cinema em 1969 por George Jonas (com Armando Bógus, Antônio Fagundes e Regina Duarte).

Dessa maneira –e orientados por uma verve um pouco mais séria que contrasta com seu humor pueril –os Trapalhões surgiam distribuídos em papéis pontuais da trama, como foi feito em “Os Trapalhões e O Mágico de Orós”, três anos antes com muito mais zelo na manutenção de sua trama: Renato Aragão é, óbvio, o protagonista João Grilo, de lábia afiada e raciocínio ligeiro para enganar os outros a sua volta; Dedé Santana (talvez, o integrante do grupo que sempre mais dedicou-se à atuação) surge como Chicó, o ingênuo parceiro de João Grilo em suas armações; Zacarias aparece na pele do padeiro local, marido muquirana de uma esposa adúltera (Claudia Gimenez); por sua vez, Mussum (aqui, num surpreendente registro austero), que evidentemente se incumbe do papel de Jesus, tem essa participação aumentada no roteiro através da manobra na qual, devidamente disfarçado numa identidade negra, Jesus já acompanhava a história desde o começo, como o humilde frade a serviço do bispo (Renato Consorte).

Tudo começa quando a mulher do padeiro, inconsolada com o estado desenganado de seu cão de estimação, recorre aos retirantes João Grilo e Chicó para que convençam o padre (Emmanuel Cavalcanti) e o sacristão (Sandro Solviatti) a lhe benzer o cachorro.

Diante da inevitável resposta negativa, João Grilo e Chicó inventam das suas: Contam que o cachorro na verdade pertence ao temido coronel da região (Raul Cortez) e, mais tarde, quando são descobertos, surgem com a conversa de que o dito cachorro deixou um generoso testamento que beneficiava a Igreja.

Simplificadas a ponto de se tornarem quase banais, as sub-tramas que compunham a graça do texto de Suassuna (que incluem também o trecho do gato que bota dinheiro), passam quase como piadas de rodapé pela encenação algo caótica do filme –dirigido por Roberto Farias –uma narrativa circense que remete ao despojamento de outros filmes dos Trapalhões, mas mostra-se pouca harmoniosa nesta realização.

O terço final é mais fiel ao texto original, quando a cidade recebe uma invasão de cangaceiros liderados pelo impiedoso Severino (o ótimo José Dumont), e a maioria desses personagens encontra a morte –inclusive João Grilo e, por conta de um golpe deste, o próprio Severino!

Vão assim todos parar numa espécie de julgamento celestial à moda de cordel, onde o Jesus negro personificado por Mussum ouvirá as acusações da parte do Capeta (Raul Cortez, novamente) e eles terão suas sentenças intercedidas pela benevolente Nsa. Senhora (Betty Gofman).

Rasteiro em sua tentativa de profundidade e prejudicado justamente em seu ponto forte (o humor) pela atmosfera respeitosa que predomina no projeto, “Os Trapalhões No Auto da Compadecida” não está entre as melhores realizações do quarteto por vários fatores que o levaram ironicamente a diferenciar-se das suas demais produções –e talvez tenha sido isso que levou eles, em seu projeto seguinte, “Os Fantasmas Trapalhões”, a adotar uma série de concessões mercadológicas que com o tempo minaram a qualidade de seus filmes. Há certo mérito na postura que norteou “Os Trapalhões No Auto da Compadecida” e na intenção de não ficar numa zona de conforto, mas é pena isso não ter resultado num belo e válido filme, algo que fica evidente para as plateias de hoje de maneira muito mais contundente que para as plateias da época ao compará-lo com a maravilhosa versão contemporânea de Guel Arraes (lançada no ano 2000), essa sim uma obra genial em termos artísticos, narrativos e dramáticos, que captura toda a beleza, melodia e autenticidade moral embutidas no texto de Ariano Suassuna.

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