terça-feira, 3 de novembro de 2020

Fome Animal


 Magnífica fusão de comédia e terror –o chamado ‘terrir’ –o apoteótico “Fome Animal” foi o trabalho de mais destaque no início de carreira de Peter Jackson, antes dele descobrir a aclamação da crítica por “Almas Gêmeas” e rumar em direção ao fenômeno sem precedentes que foi “O Senhor dos Anéis”.

Ali, se notava um diretor (e certamente sua engajada equipe técnica) cujo talento sobrepujava as condições restritas do cinema B que executava para moldar um obra sarcástica, travessa, primorosa e vibrante –“Fome Animal” deve ter feito a festa de aficcionados pelo terror e pelo gore nos nichos por onde passou nos peculiares anos 1990.

No prólogo, descobrimos dois homens perseguidos por uma tribo indígena, a fugir com um espécime animal da própria Ilha da Caveira (uma referência ao clássico “King Kong”, muitos anos antes do próprio Peter Jackson realizar sua ambiciosa e notável refilmagem). Um deles, interessado em levar o animal –um tal ‘Macaco Rato de Sumatra’ –a qualquer custo, é mordido; e por isso os nativos que o acompanham sabem o que fazer sem pestanejar: Lhe amputam as partes que foram mordidas na mesa hora (!).

“Fome Animal” começa assim: Sangrento, despojada e nada sutil. E assim será até seu formidável desfecho.

Os protagonistas de sua trama são um iminente e adorável casalzinho na Nova Zelândia: A sensual e ingênua imigrante latina Paquita (a deliciosa Diana Peñalver) e o desengonçado Lionel (Timothy Balme). Parecem até oriundos de alguma comédia romântica, mas não são: Paquita crê na previsão das cartas de tarô que lhe apontam um romance duradouro com Lionel, no entanto, o rapaz –uma espécie de Norman Bates (de “Psicose”) em potencial –mora com a mãe (Elizabeth Moody) que lhe humilha e oprime, podando qualquer chance do rapaz adquirir autonomia e independência.

Numa rara oportunidade, Lionel leva Paquita a um passeio no zoológico, onde são seguidos pela ardilosa mãe dele –e é lá que esses personagens encontram o Macaco Rato de Sumatra (uma criação em stop-motion feita com uma divertidíssima tosquice auto-consciente) que acaba mordendo a mãe do rapaz e tendo sua cabeça esmagada por ela ali mesmo!

Ao longo dos dias, Vera, a mãe, vai apresentando os sintomas característicos do gênero onde a pessoa apodrece e se converte num zumbi (!), mas o filme de Jackson jamais se acomoda nessa circunstância: Embora seja dada como morta, Lionel sabe que não foi exatamente isso que aconteceu; e a leva para o porão de sua casa, bem como a todos que, no processo, ela vai infectando –a enfermeira McTavish (Brenda Kendall), o padre (Stuart Devenie) que num dado momento luta kung-fu com os mortos-vivos (!), e o membro de uma gangue de motoqueiros, ou coisa assim... –de capacho subserviente da própria mãe (mesmo depois de morta!), o passivo e submisso Lionel vira capacho subserviente de um bando de zumbis que passa a abrigar em seu porão, para perplexidade da apaixonada Paquita; e essa característica sempre irônica a definir seus personagens (dos principais aos coadjuvantes) persiste por todo o filme, embriagando-o de estilo.

E não pára aí: Quando surge o interesseiro Les (Ian Watkin), o tio de Lionel disposto a surrupiar a herança do rapaz, o filme de Peter Jackson parece finalmente encontrar seu ápice; numa festa de arromba promovida por Les –e que reúne uma multidão dentro da casa –os zumbis preservados no porão enfim se libertam dando início a um festival de sangue raras vezes visto no gênero. Podia-se notar, já nesse formidável “Fome Animal” que essa equipe haveria de fazer algo genial em algum momento no futuro: As sequências de gore incontido que o filme entrega em profusão atordoante a partir de certo ponto impressionam pelo nível elevado de inventividade, e pelo uso inteligente e nunca acomodado dos efeitos práticos de maquiagem que, num crescendo espantoso e condizente com sua proposta, vão soterrando os atores de quilos de maquiagem e litros de sangue cenográfico (!) numa sangreira desatada que orgulharia o mestre italiano Lucio Fulci.

Parece ser com facilidade que “Fome Animal” molda, uma a uma, sequências absolutamente memoráveis: Entre muitas outras, temos o enervante bebê morto-vivo; a luta do herói contra um ‘intestino grosso animado’ (!); o mesmo herói, no espetacular e escatológico clímax, trucidando as hordas de zumbis usando um cortador de grama (!!) e a luta final, no telhado da casa, contra a mãe-zumbi, convertida num monstro de proporções improváveis, que é também um acerto de contas do protagonista contra suas repressões pessoais.

Inspirado pela irrestrito exercício sanguinolento de maquiagem visto em “A Morte do Demônio”, de Sam Raimi, este filme, o mais cultuado da primeira fase na carreira de Peter Jackson –aquela que muito definiu seu perfil enquanto contador de histórias –é um trabalho ácido e politicamente incorreto num nível em que jamais poderia ser feito hoje; e ainda bem que ele existe para poder ser conferido!

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