Este é um corpo estranho quando avaliamos o
perfil dos outros únicos dois filmes que, como ele, em toda a história do
cinema conquistaram todos os cincos Oscars principais (Filme, Diretor, Ator,
Atriz e Roteiro). Foram eles: “Aconteceu Naquela Noite” e “Um Estranho No Ninho”.
Mas, a própria obra de Jonathan Demme já trata
de deixar bem claras as razões para essa larga consagração: Começamos a história
acompanhando a jovem agente do FBI, ainda em treinamento, Clarice Starling
(Jodie Foster, sensacional). As seqüências iniciais, que a mostram em sua
ofegante e desgastante rotina preparatória já evidenciam as dificuldades pelas
quais a jovem passa para se impor num ambiente predominantemente masculino –e esses
elementos serão reiterados o tempo todo pelo diretor.
Chamada para uma reunião com o chefão do FBI, Jack
Crawwford (Scott Glenn), fica bastante claro o desconforto, em diversos níveis,
ao qual Clarice é exposta (e todas as cenas com o aparentemente paternal
Crawford serão envoltas nessa dúbia –e até perturbadora –atmosfera onde a
narrativa impõe climas distintos, ora de uma estranha e inapropriada atração
sexual, ora de absoluta inadequação. Um lembrete do quão inóspito e hostil o
mundo dos homens pode revelar-se às mulheres.).
Clarice recebe a significativa missão –essencial
para sua ficha de agente iniciante –de entrevistar um psicótico encarcerado com
a nebulosa intenção de criar um perfil para um outro psicopata, denominado
Bufallo Bill, a solta que vem fazendo vítimas.
Mas o prisioneiro em questão, Hannibal Lecter
(o grande Anthony Hopkins, no personagem de sua vida), não é um psicopata
comum, trata-se de um brilhante psiquiatra capaz de penetrar na mente da jovem,
por quem, nas suas sucessivas entrevistas ele passa a nutrir um estranho
fascínio.
A moça por sua vez é incapaz de evitar sua
aproximação.
Há uma série de dualidades trabalhadas pela
direção e pelo roteiro, e que podem passar facilmente despercebidas pelo
expectador: O mundo orquestrado por Demme é um amalgama de segundas e terceiras
intenções que passam longe do simbolismo bidimensional de bem e mal,
representados na introspectiva Clarice e no intenso Hannibal. O FBI vale-se da
própria Clarice para chegar até a mente de Hannibal, e dela tentar extrair a
informação necessária. Já, Hannibal se deixa levar pelo jogo de interesses do
FBI, apenas porque eles lhe entregaram um divertimento fascinante o suficiente –na
forma de Clarice –para que ele dê sua colaboração indiferente no caso.
Clarice, portanto, quer ingressar no mundo
masculino do FBI. O FBI quer ingressar no mundo insano e surreal que é a mente
de um psicopata (Hannibal). O próprio Hannibal, em sua curiosidade sádica, quer
entrar nesse mundo novo que é a mente de Clarice –e dela extrair os segredos
que a fazem ser tão interessante aos olhos dele (A questão em torna da
lembrança de infância a respeito do grito das ovelhas é um elemento profundo e
significativo acerca do ímpeto que move a personagem). Tudo isso, para capturar
Bufallo Bill (Ted Levine, ameaçador), um psicótico, que está livre em algum
lugar do mundo (desta vez, o real), a exacerbar as regras de conduta lícita,
promovendo a morte de inocentes.
Dentre todas essas dicotomias, a que mais
parece interessar à Jonathan Demme, é a interação formidável e hipnótica entre
Clarice e Hannibal, embora ele jamais negligencie as outras facetas de seu
filme –é, portanto, até curiosa a economia com que o notável personagem de
Hannibal Lecter é empregado aqui, quando observamos o quanto ele (assim como
seu intérprete) passou a ser usado e enaltecido em filmes posteriores –todos incapazes
de igualar a excelência deste daqui.
Pouco a pouco, a condução
magistral (não à toa, com algo de expressionista) de Jonathan Demme vai reduzir
esses reflexos e reflexões do mundo como ele é à um preocupante eufemismo de
sua essência: Quando Clarice Starling, e somente ela, será confrontada com o próprio
Bufallo Bill, não encarcerado como Hannibal, mas absolutamente livre e solto!
Quando então “O Silêncio dos Inocentes” haverá de se impor como a obra
espetacular de suspense psicológico que é.
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