quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

O Franco Atirador

Os EUA ainda digeriam com certa relutância a experiência frustrante do Vietnam quando o diretor Michael Cimino, prontamente em 1978, lançou aquele que deve ser o primeiro trabalho a debruçar-se sobre as mazelas daquela guerra da forma como o cinema americano passou realmente a fazer –clássicos mais antigos como “Os Boinas Verdes”, com John Wayne (também ele ambientado no Vietnam), eram registros ultrapassados que remetiam ao anacronismo da Velha Hollywood a fim de insuflar uma inapropriada propaganda de guerra.
Com “O Franco Atirador”, Cimino almejava algo diferente: Lançar uma ótica essencialmente inquisitiva sobre a guerra e suas conseqüências a partir da história de um grupo de jovens amigos.
Assim, sendo, é numa cidade metalúrgica do norte dos EUA que encontramos os jovens de classe trabalhadora, unidos por uma profunda amizade, que serão, a sua maneira, o cerne de toda a desestabilizadora narrativa de Cimino. E o elenco que o diretor reuniu para interpretar esses personagens é, ainda hoje, impressionante: Robert De Niro, John Savage, Christopher Walken (vencedor do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por este filme), John Gazale, além de Meryl Streep como a namoradinha do personagem de Walken.
Sem a menor pressa, Cimino dedica pelo menos toda a primeira hora de filme a acompanhar a forma com que todos celebram sua amizade durante a longa cerimônia de casamento de um deles, quando estão prestes a serem enviados, nos dias vindouros, como combatentes ao Vietnam. A percepção de premeditado drama que se instala aos poucos ganha um contorno maior da seqüência em que eles caçam juntos na manhã seguinte, envolta em simbolismo e em uma atmosfera fria e triste –justamente, o momento que batiza o filme, “The Deer Hunter” (O Caçador de Cervos), no seu título original.
De repente, num corte tão severo e brutal quanto será sua postura como contador de histórias daqui por diante, Cimino arremessa platéia e personagens –sem pretexto, justificativas, preâmbulos ou cenas intermediárias –na loucura da guerra. O que se segue então é uma sucessão violenta de cacofonia e brutalidade que o diretor Cimino eventualmente poderá até aliviar em termos de som e fúria, mas que jamais irá arrefecer (pelo contrário) no que diz respeito à esmagadora tensão psicológica. Os protagonistas (pelo menos aqueles que não morrem!) tornam-se prisioneiros dos vietcongues e são submetidos a terríveis torturas psicológicas envolvendo roleta russa: Eles são obrigados a engatilhar pistolas contra a própria cabeça podendo elas estar carregadas ou não.
Eles escapam e mais tarde voltam para casa totalmente transformados pela experiência da guerra. Cabe a um deles (interpretado por De Niro), ao que parece, zelar pelos companheiros, todos em frangalhos, físicos e psicológicos –o personagem de John Savage, por exemplo, perdeu uma perna no combate e tal flagelo o impede de viver; já o de Walken, perdeu completamente o juízo e ficou no Vietnam onde ganha dinheiro em disputas de roleta russa (!), ainda que a personagem de Meryl Streep não seja capaz de esquecê-lo.
“O Franco Atirador” é, por isso mesmo, uma obra deliberadamente pesada, difícil e extenuante na qual todo o desgastante drama humano não apenas propicia um curioso reflexo do olhar que o povo norte-americano dirigiu a guerra do Vietnam nos anos 1970, como também abre um leque variado de elementos dramáticos com os quais o diretor Michael Cimino possa trabalhar –e assim evidenciar uma insuspeita capacidade artística –ainda que visto hoje, muitos desdobramentos de seu roteiro soem ocasionalmente exagerados.

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