sábado, 25 de março de 2017

Delicatessen

Só mesmo Jean Pierre Jeneaut (na época ainda fazendo parceria com Marc Caro) para realizar um filme onde confluem inspirações vindas dos desenhos animados (evidente no comportamento quase esquizofrênico dos personagens, e no visual estilizado) e características adultas bem macabras –entre elas o canibalismo e uma forte noção de fatalismo –tudo pontuado com ironia e humor negro.
Afinal este trabalho nada mais é do que um pequeno panorama das mazelas existenciais da humanidade, como toca ao gênero a que pertence: A ficção científica.
É uma desolada cidadezinha francesa em frangalhos, quase soterrada por pó do deserto onde a narrativa nos joga. A época aparenta ser um futuro indefinido, onde as escassez de comida conduz os moradores ao desespero. Todos moram num mesmo prédio daonde, à princípio, parecem não poder sair. O andar térreo, como veremos mais à frente, é ocupado por um açougue chamado Delicatessen, cujo proprietário (Jean-Claude Dreyfuss) normalmente não encontra outras opções senão a de servir a carne de seus empregados como alimento para sua clientela (!).
O mais recente empregado, contudo, é o ex-artista de circo, louco por achar sua própria finalidade, Louison (Dominique Pinon, presença recorrente nos filmes de Jeneaut), por quem Julie (Marie-Laure Dougnac) a filha engraçadamente míope do dono do açougue se apaixona.
Louison se desdobra em tarefas e multiplica-se nos afazeres que lhe cercam no açougue, mas seu chefe planeja mesmo dar a ele o mesmo destino dos demais ajudantes: Virar a comida que preencherá, ao cair da noite, a barriga dos bizarros moradores.
A fim de salvá-lo desse destino macabro, Julie entra em contato com um grupo de estranhos revolucionários vegetarianos (!) que habitam o subsolo.
Primeiro trabalho em longa-metragem de Jean Pierre Jeneaut –cujo “Fabuloso Destino de Amélie Poulain” o tornaria uma espécie de estrela –“Delicatessen” era definido pelo próprio realizador como um filme que “não se inclui em nenhuma corrente do cinema francês”, sendo citada como maior freqüência por ele uma referência à “Brazil-O Filme”, de Terry Gillian.
No entanto, naquele início dos anos 1990, era possível perceber, sim, algumas similaridades com exemplares também bastante insólitos vindos da França, em especial os trabalhos de Leos Carax como o inusitado “Mauvais Sang”, ou mesmo obras de orientação e inclinação incomum, como as de Jean-Jacques Beineix (os produtores e boa parte da equipe técnica, por sinal, são aos mesmos de “Betty Blue”).
Dito isso, há clara influência dos quadrinhos europeus da revista “Metal Hurlant” –que também influenciou, e ainda influencia, os trabalhos de Luc Besson –na composição impregnada de delírio e peculiaridade, revestindo esta parábola tão visualmente admirável quanto humoradamente lúgubre de uma névoa de ambigüidade, o quê lhe permite abordar tópicos como a insanidade e o suicídio sob um viés de inacreditável leveza.

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