Um faroeste dirigido e escrito por Alejandro
Jodorowsky certamente não haveria de ser algo convencional, e “El Topo” se
inclui com honras na bizarra e pouquíssima usual filmografia do realizador
chileno.
Como na totalidade de seus trabalhos há um
desfile sem fim de alegorias e simbologias, muitas de ordem esotérica e psicológica,
todas colocando o filme num universo à parte do realismo em voga na grande
maioria dos faroestes, mas bastante relativo ao trabalho de Jodorowsky.
O personagem protagonista, vivido com certo
grau de narcisismo por Jodorowsky em pessoa, um pistoleiro singrando no deserto
todo vestido de preto atende pela simples alcunha de El Topo –‘a toupeira’ como
é explicado no início, um animal que cava incessante a terra em busca do sol e
quando o encontra, na superfície, termina cego por sua luz. Como o animal de
onde tira seu nome, El Topo tem um sol a perseguir, embora não fique muito
claro o quê ele seja. Ao seu lado, ele leva sempre um garotinho nu (Brontis
Jodorowsky, filho do próprio diretor), num processo brutal de iniciação.
Em princípio, El Topo parece guiado pela
necessidade de se provar um hábil pistoleiro, e tal objetivo o leva a confrontar-se
com quatro estranhos bandoleiros –que afrontam de maneiras um tanto
desconcertantes um grupo de padres franciscanos –à serviço de um coronel (uma
figura tão surreal e patética quanto outras que estão por vir). Ele salva uma
bela moça (Mara Lorenzio) de uma inevitável violação e, em sua vaidade, resolve
levá-la consigo, substituindo o garotinho por ela (este, amargurado, acaba
ficando com os padres).
Nos anos seguintes, El Topo haverá de tentar
provar-se de outra forma: Ele quer mostrar-se valoroso para poder consumar seu
romance com aquela mulher, e em busca dos adversários adequados para esse
desafio, ele faz uma desolada e longa travessia em espiral pelo deserto –e,
nesse entrecho, eles notam que a sombra abaixo da mulher na areia revela ovos
(!), enquanto que a sombra de El Topo não revela nada; por outro lado, El Topo é
capaz de atirar nas pedras e, dos buracos que faz, extrair água, e ela não
(seria, talvez, uma alegoria das diferentes aptidões vocacionais e existenciais
do Homem e da Mulher na sociedade patriarcal).
El Topo termina encontrando oponentes
inesperados (um velho crente que é imune à balas, e adversários contra os quais
precisa usar subterfúgios diferentes para obter vitória, entre outros
personagens religiosamente metafóricos) e um rival de fato pelo amor da bela moça
nas formas de outra mulher (!), para quem, ao fim, acaba perdendo sua
companheira.
O protagonista, arrasado pela derrota,
experimenta uma morte simbólica (com ferimentos que remetem às chagas cristãs),
e a primeira parte do filme (que, à propósito, se chamava “Gênesis”) se
encerra, fazendo com que se inicie a segunda parte, “Salmos”.
Aquele que supostamente seria El Topo ressurge
no que parece ser um filme completamente diferente do que Jodorowsky vinha até
então narrando. Ele agora se acha embaixo da terra, no interior de uma montanha
onde vive ao lado de parias e deficientes físicos. Ele se compadece deles e
assume, desta vez, a missão de juntar recursos para tirá-los de lá. Ao lado de
uma anã (Jacqueline Luis) por quem mais tarde se enamora (!), El Topo segue até
a cidade próxima, habitada pelas perniciosas e corruptas pessoas que teriam
isolado os excluídos naquela montanha; a cidade tem o símbolo de um triângulo
com olho (o Olho da Providência, representação de Deus observando da
Humanidade) para todos os lados. E seus habitantes vivem de mentiras confortáveis
que contam a si mesmos (um negro, escravo dócil que insistem ser um insurgente;
disputas realizadas como forma de rituais que não levam nem a vencedores nem a
perdedores; subordinados que são usados até mesmo como montaria). Em suma, são
degenerados ainda que discursivamente moralistas.
Entre eles, El Topo (agora careca, sem o longo cabelo
e a densa barba que antes ostentava e vestido como um monge) e sua companheira
anã se propõem a mendigar e a trabalhar duro na tentativa de abrir uma saída
para a montanha –não só o filme mudou, o protagonista e sua postura também. Os
planos de El Topo são interrompidos quando ele conhece o padre local:
Justamente o filho que ele há tanto tempo abandonou (agora vivido pelo ator
Robert John). É ele quem agora traja o figurino negro que antes era do pai, e
com suas armas promete matá-lo num gesto freudiano, mas só depois que tiver
cumprido sua incumbência –cavar para os deficientes saírem da montanha.
Neste ponto, El Topo se vê quase que reduzido à
tarefa da toupeira –entretanto, se o animal quer cavar para sair da terra, o
protagonista quer cavar em direção a ela.
No desfecho, El Topo com a ajuda de sua
companheira anã (que dele está grávida!) e, com relutância, do próprio filho,
finalmente consegue libertar os excluídos de dentro da montanha, somente para vê-los
encontrar a morte na mira das armas dos moradores da cidade. Num ato em referência
total ao monge vietnamita que ateou fogo ao próprio corpo em protesto contra a
guerra, El Topo faz o mesmo, deixando-se queimar com o fogo e o querosene de um
lampião, para então ser enterrado num jazigo cercado de abelhas e favos de mel.
Muitos são os que acusam “El
Topo” e seu realizador de pretensão, e outros (como o próprio John Lennon, na época)
ainda o elegem ao status de cult, mas uma coisa é certa: Em algum lugar desse
mar de metáforas visuais, Jodorowsky fez um faroeste vanguardista e surreal,
provavelmente o único do cinema.
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