A arte e a indústria assimilam as características
mesmo transgressivas e inovadoras fazendo com que, a partir de um determinado
ponto, eles soem como algo comercial. De certa forma foi o que aconteceu quando
do lançamento, nos anos 1990 de “De Olhos Bem Fechados” –o diretor Stanley
Kubrick, então há uma década sem filmar, entregou um filme nos seus moldes mas
que, ao contrário de suas outras obras, não surpreendeu o público já acostumado
com toda uma nova geração de filmes e realizadores que absorveram lições
narrativas do próprio Kubrick (embora, “De Olhos Bem Fechados” seja, apesar de
tudo, um tipo de obra muito especial, que cresce a cada revisão).
Foi também o que de certa maneira aconteceu com
o diretor e roteirista M. Night Shyamalan, guardadas as devidas comparações
(ainda que o vaidoso Shyamalan viesse a aceitar com satisfação uma comparação
com Kubrick): Após o sucesso estarrecedor de “O Sexto Sentido” e de outros
grandes filmes que se seguiram (“Corpo Fechado”, “Sinais” e “A Vila”), nos
quais ele, acima de tudo, estabeleceu uma reputação de autor diferenciado e
desigual –além de criar também uma receita bastante específica por meio da qual
seus trabalhos eram concebidos, como a trama de natureza incomum, fortes
elementos de suspense, e uma reviravolta mirabolante no seu final –Shyamalan
viu sua magia, digamos, se apagar.
Depois do irregular “A Dama Na Água”, ele
engatou tentativas fracassadas de reproduzir os mesmos filmes fascinantes de
outrora –o tenebroso “Fim dos Tempos”, o claudicante e modorrento “O Último
Mestre do Ar” (adaptado da série animada “Avatar”), o desinteressante “Depois
da Terra” e, mais recentemente, o suspense realizado em found-footage “A Visita”.
O quê nos leva, enfim, a este “Fragmentado”,
que apesar de seus lampejos de imperfeição, parece sinalizar um retorno de
Shyamalan aos bons tempos em que era capaz de fazer ótimos filmes.
Como naqueles quatro primeiros e melhores
trabalhos que ele realizou, “Fragmentado” é um delicioso conto de suspense que une
sobrenatural, dramaticidade e absurdo numa roupagem que os reveste de algum
realismo, tudo enfatizado a partir de um texto cheio de pormenores.
Em princípio, acompanhamos o desenrolar
intrigante da trama pelos olhos da jovem e desajustada Casey (a maravilhosa
Anya Taylor-Joy, de “A Bruxa”) que, ao lado de duas amigas mais, digamos,
normais (Haley Lu Richardson e Jessica Sula) é raptada e levada ao que parece
ser uma cela num porão por sociopata metódico que aparentemente responde pelo
nome de Dennis (James McAvoy, impecável). Aparentemente... pois, ao longo do cárcere,
as três garotas descobrirão que Dennis é somente uma das muitas identidades que
habitam aquele corpo –há também Patrícia, um mulher de comportamento manipulador; Hedwig, um garoto impulsivo de nove anos; Barry, um rapaz com talento para ser estilista de moda; Orwell, um homem culto, porém inseguro e outras mais
(embora essas sejam as que importam para a trama) num total de vinte e três personalidades
completamente distintas (!).
Porém, uma outra está a caminho.
Todos os outros a mencionam como sendo “a Fera”,
e é aí que entram as três garotas seqüestradas: Tudo indica que Casey e as
outras servirão como uma espécie de presa para quando a mais terrível e
perigosa de todas as identidades aflorar.
Tal e qual é comum em suas obras, as premissas
de Shyamalan se estruturam em torno de referências inusitadas e claras –aqui,
elas são o clássico “O Colecionador” (também ele sobre um cárcere e uma relação
ambígua entre cativa e captor) e o conto de fadas “João e Maria” (no tom surreal
do aprisionamento e no eufemismo, cada vez mais explícito, do abuso). Como
comprovam alguns ocasionais flashbacks que interrompem a narrativa claustrofóbica,
Casey tem um passado familiar traumático e, na cartilha quase comiserativa de
Shyamalan, essa perturbação a torna mais apta a sobreviver naquela situação do
que suas outras amigas –e, no desfecho de certa forma amargo, percebemos que
escapar daquela enrascada representa, para ela, regressar àquele tormento.
Shyamalan, na busca algo disfarçada de uma obra
pop, não escapa de alguns equívocos ginasianos: Além de uma continuidade
notadamente defeituosa, a representação novelesca do TDI (Transtorno
Dissociativo de Identidade) oferecida por seu filme é uma de suas mais
constantes críticas.
Nada disso, contudo,
importa muito diante do fato de que este é o mais satisfatório filme que
Shyamalan conseguiu entregar desde “A Vila”. Embora no final ele se isente de
entregar mais uma das suas ‘reviravoltas-surpresa’ (embora isso seja, afinal,
uma surpresa também...) ele oferece um vislumbre delicioso para uma continuação:
Na forma da aparição inesperada e sensacional do protagonista de um de seus
mais cultuados filmes.
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