terça-feira, 3 de abril de 2018

Os Idiotas

O Movimento Dogma 95 almejava uma forma mais pura de se fazer cinema a partir de diretrizes que os realizadores incluídos no projeto –em sua maioria dinamarqueses –deveriam seguir à risca: Somente luz natural; atores sem maquiagem e sem marcações cênicas, improvisos, cenários exclusivamente reais, sem créditos ou sub-títulos, sem tratamento visual na pós-produção.
Haviam várias regras que caminhavam na direção de um cinema mais rústico. A arte em estado bruto. Um dos encorajadores mais proeminentes desse movimento, logo ficou claro, era o polêmico diretor Lars Von Trier.
Recém-saído da aclamação por “Ondas do Destino” –até hoje um de seus melhores trabalhos –a opção de Von Trier por seguir as espartanas propostas desse movimento foi inusitada já que, naquele ponto da carreira, ele podia trabalhar com os recursos que bem entendesse.
E as diretrizes do Dogma 95 não eram fáceis de serem seguidas mesmo: O próprio “Os Idiotas”, que Von Trier realizou dentro desses preceitos gerou alguma celeuma entre seus colaboradores porque os produtores fizeram uma filtragem de iluminação para algumas cenas à revelia de Von Trier durante o processo de pós-produção; o quê era, afinal, contra as normas do Dogma 95.
Esse detalhe não impediu “Os Idiotas” de figurar ao lado de “Festa de Família” como um dos mais emblemáticos e memoráveis títulos desse movimento.
A câmera sempre irrequieta de Lars Von Trier acompanha Karen (Bodil Jorgensen), uma mulher deprimida e desiludida; por razões que só iremos realmente saber na seqüência final. Ela entra num restaurante chique onde, assim como todos os outros fregueses, se espanta com o comportamento de um trio numa das mesas: Trata-se de uma jovem que aparentemente tenta conter a indiscreta espontaneidade de dois adultos deficientes mentais.
Em parte por compreender que não tem dinheiro para fazer muita coisa naquele restaurante, em parte por, à sua própria maneira, não se adequar ao lugar assim como eles, Karen vai embora de lá junto com os três.
Contudo, descobre que eles, na verdade, fazem parte de um grupo pessoas normais que, reunidos numa casa à venda, se fingem de retardados mentais nos lugares aonde vão. Às vezes para adquirir algum benefício, às vezes apenas pela graça de perturbar as normas vigentes.
Quando indagados da razão pela qual fazem isso, cada um elabora uma teoria distinta da dos colegas (para fugir da monotonia do dia-a-dia; para contestar algumas das imposições da sociedade; para mostrar que, como idiotas, eles fazem parte de um nicho privilegiado no mundo moderno; para perturbar a pretensa solidez dos preconceituosos), assim como também não concordam com os pretextos que os levaram a começar a fazer aquilo.
Fascinada com a capacidade de todos eles em serem livres, e desejosa, também ela, em ter essa liberdade, Karen junta-se à eles, os supostos idiotas que em verdade se julgam mais espertos que todo mundo, liderados pelo ocasionalmente eloqüente Stoffer (Jens Albinus).
Karen não é tão desenvolta em fingir sua idiotice, mas ela tenta. Porém, de situação em situação, os idiotas tentam justificar e convencer sua atitude com tanta certeza que terminam se fazendo de idiotas até para eles mesmos: O momento que corresponde ao ápice de absurdo nessa mentalidade é uma cena de orgia –na qual Von Trier não tem pudor em registrar tomadas de sexo explícito –onde, por mais que mantenham o comportamento débil mental, eles se encontram só entre eles mesmos!
Talvez seja por isso que é, a partir daí, que o grupo, tão unido e feliz em torno de sua torpe ideologia, começa a se fragmentar: Os problemas do mundo real e das vidas individuais de cada um começam a segui-los até aquela casa onde se reúnem para fingir serem o quê não são.
Para alguns incômodo, sarcástico, despojado e certamente provocador, “Os Idiotas” é um filme que se permite uma avaliação que pulsa em ironia da parte de seu realizador: Mesmo que as diretrizes do Dogma 95 tenham sido defendidas por Von Trier com unhas e dentes, ele ainda assim fez aqui um filme que mostra quão instável e fugaz é a tentativa de se viver sob um dogma. Por mais convictos e crédulos em sua causa que fossem, os idiotas liderados por Stoffer são incapazes de notar o quanto é curto o prazo de validade de sua ideologia diante de medos e anseios reais (quando precisam fingir na frente de familiares e conhecidos), restando apenas Karen, cuja angústia que a faz uma pária é muito mais profunda e pungente que a de qualquer um ali.
Na cena final, ela até tenta encontrar sua idiota interior, não como um gesto de coragem, mas sim porque ela simplesmente não tem para onde fugir.

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