segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Anjo da Guerra

No cinema do diretor André Techiné (de “Rendez-Vous”) onde se veem registradas mais as abstrações do que as fac-símiles, um drama de guerra pode representar um corpo estranho, até adverso, mas o belo “Anjo da Guerra” impõe-se facilmente inclusive por sua habilidade de enredar o expectador por meio de primores invulgares típicos de um grande realizador.
A película começa com cenas documentais em preto & branco; flagrantes reais, desconcertantes e não raro perturbadores da guerra.
Logo, sabemos então objetivamente de qual guerra a ex-professora Odile (Emmanuelle Béart) foge: O ano é 1940 e Paris sofre a iminência de uma invasão alemã. As ruas se abarrotam de desolados cidadãos em fuga. E com seu marido, um soldado francês, já comprovadamente morto em campo de batalha, Odile é um desses fugitivos ao lado dos dois filhos pequenos, Phillipe (Gregoire Leprince-Ringuet), com treze anos, e Cathy (Clemence Meyer), com oito.
O carro que os transportava não tarda ser inutilizado por bombardeios alemães aleatórios e a família, guiada de sobressalto por um jovem que se achava na estrada, se embrenha na floresta longe dos muitos perigos que sinalizavam nas aglomerações humanas.
É quando o diretor Techiné abandona os rigores informativos referentes à premissa que tanto pareciam incomodá-lo e parte para elaborar o filme que queria fazer de fato.
Sem maiores cerimônias, ele passa a centralizar o jovem intruso naquele núcleo familiar, Yvan (numa atuação notável de um pouco mais que adolescente Gaspar Ulliel).
A partir daí, será das impressões nunca claras e sempre voláteis entre esses personagens que a narrativa irá se esbaldar.
Yvan aparenta ser um órfão e a proximidade de uma família lhe atiça um interesse que ele não deseja admitir –ele conquista a afeição de Phillipe e usa de pretextos indiretos para convencer Odile a permanecer por perto. A própria Odile, guiada por jocosas noções éticas na maior parte do tempo, não quer dar o braço a torcer para as praticidades do garoto mundano, mas também não consegue evitar o fato de que ele tem alguma razão em boa parte do tempo.
Não é preciso ser nenhum gênio para compreender as segundas intenções do jovem em querer ter por perto –e sem outros adultos para atrapalhar –uma mulher bela, madura e desejável como Odile (elementos potencializados pelo fato de se ter Emmanuelle Béart a interpretá-la).
A dinâmica é explorada com riqueza: Yvan encontra uma mansão abandonada no meio do campo e consegue invadi-la sob a promessa de Odile que só usarão o telefone e o que precisarem no momento –entretanto, Yvan inutiliza o fio do telefone, e ao prover caça (comida, portanto) constante à mesa com suas saídas para a floresta, logo convence Odile a ficar por lá com as crianças enquanto têm um teto sob suas cabeças para dormir, e refúgio para uma guerra que se desenrola nas redondezas mais longínquas.
Tão incrivelmente harmoniosa é a condução de tal trama que sequer percebemos o quanto o filme de Techiné, em sua abordagem da guerra, se revela inusitado e elíptico.
Yvan assim vai conquistando Odile (e o público) aos poucos. Ele se torna uma espécie de irmão mais velho para Phillipe –até porque é pueril demais para representar uma figura paterna –e, na circunstância desigual que encontra, uma presença masculina na casa que Odile percebe cada vez mais como essencial.
As coisas se desestabilizam quando a guerra bate à porta, ou seja, dois soldados errantes (Samuel Labarthe e Jean Fornerod) em busca de comida e um lugar para dormir.
Sua presença ali lhes lembra um mundo lá fora, ratifica a juventude de Yvan, a discrepância de idade entre ele e Odile, a ilusão de que aquela casa era seu lar e a conveniência de acreditar que estando ali estavam seguros.
Quando os soldados, por fim, partem, no entanto, é Odile quem inesperadamente cede aos seus desejos aceitando, num breve interlúdio, Yvan como seu amante –talvez, porque se deu conta da falta que ele fazia, talvez para aplacar o desejo pela presença real de um homem que os soldados lhe instigaram.
De qualquer modo, o diretor André Techiné joga por terra a possibilidade de um romance logo na cena seguinte, quando desenha um amargo desfecho para seu filme de maneira até bastante abrupta e incisiva.
Da forma como ficou, “Anjo da Guerra” é um conto de empatia e fugas existenciais apoiado em dois grandes personagens: Yvan, cuja indefinição em torno da real natureza é um dos motes perenes do filme, e Odile, à qual Emmanuelle Béart acrescenta um encanto e um magnetismo que chegam, neste filme, às raias do perturbador.

Nenhum comentário:

Postar um comentário