No cinema do diretor André Techiné (de “Rendez-Vous”)
onde se veem registradas mais as abstrações do que as fac-símiles, um drama de
guerra pode representar um corpo estranho, até adverso, mas o belo “Anjo da
Guerra” impõe-se facilmente inclusive por sua habilidade de enredar o
expectador por meio de primores invulgares típicos de um grande realizador.
A película começa com cenas documentais em preto &
branco; flagrantes reais, desconcertantes e não raro perturbadores da guerra.
Logo, sabemos então objetivamente de qual
guerra a ex-professora Odile (Emmanuelle Béart) foge: O ano é 1940 e Paris
sofre a iminência de uma invasão alemã. As ruas se abarrotam de desolados cidadãos
em fuga. E com seu marido, um soldado francês, já comprovadamente morto em
campo de batalha, Odile é um desses fugitivos ao lado dos dois filhos pequenos,
Phillipe (Gregoire Leprince-Ringuet), com treze anos, e Cathy (Clemence Meyer),
com oito.
O carro que os transportava não tarda ser
inutilizado por bombardeios alemães aleatórios e a família, guiada de
sobressalto por um jovem que se achava na estrada, se embrenha na floresta
longe dos muitos perigos que sinalizavam nas aglomerações humanas.
É quando o diretor Techiné abandona os rigores
informativos referentes à premissa que tanto pareciam incomodá-lo e parte para
elaborar o filme que queria fazer de fato.
Sem maiores cerimônias, ele passa a centralizar
o jovem intruso naquele núcleo familiar, Yvan (numa atuação notável de um pouco
mais que adolescente Gaspar Ulliel).
A partir daí, será das impressões nunca claras
e sempre voláteis entre esses personagens que a narrativa irá se esbaldar.
Yvan aparenta ser um órfão e a proximidade de
uma família lhe atiça um interesse que ele não deseja admitir –ele conquista a
afeição de Phillipe e usa de pretextos indiretos para convencer Odile a
permanecer por perto. A própria Odile, guiada por jocosas noções éticas na
maior parte do tempo, não quer dar o braço a torcer para as praticidades do
garoto mundano, mas também não consegue evitar o fato de que ele tem alguma
razão em boa parte do tempo.
Não é preciso ser nenhum gênio para compreender
as segundas intenções do jovem em querer ter por perto –e sem outros adultos
para atrapalhar –uma mulher bela, madura e desejável como Odile (elementos
potencializados pelo fato de se ter Emmanuelle Béart a interpretá-la).
A dinâmica é explorada com riqueza: Yvan
encontra uma mansão abandonada no meio do campo e consegue invadi-la sob a
promessa de Odile que só usarão o telefone e o que precisarem no momento –entretanto,
Yvan inutiliza o fio do telefone, e ao prover caça (comida, portanto) constante
à mesa com suas saídas para a floresta, logo convence Odile a ficar por lá com
as crianças enquanto têm um teto sob suas cabeças para dormir, e refúgio para
uma guerra que se desenrola nas redondezas mais longínquas.
Tão incrivelmente harmoniosa é a condução de
tal trama que sequer percebemos o quanto o filme de Techiné, em sua abordagem
da guerra, se revela inusitado e elíptico.
Yvan assim vai conquistando Odile (e o público)
aos poucos. Ele se torna uma espécie de irmão mais velho para Phillipe –até porque
é pueril demais para representar uma figura paterna –e, na circunstância
desigual que encontra, uma presença masculina na casa que Odile percebe cada
vez mais como essencial.
As coisas se desestabilizam quando a guerra
bate à porta, ou seja, dois soldados errantes (Samuel Labarthe e Jean Fornerod)
em busca de comida e um lugar para dormir.
Sua presença ali lhes lembra um mundo lá fora,
ratifica a juventude de Yvan, a discrepância de idade entre ele e Odile, a
ilusão de que aquela casa era seu lar e a conveniência de acreditar que estando
ali estavam seguros.
Quando os soldados, por fim, partem, no
entanto, é Odile quem inesperadamente cede aos seus desejos aceitando, num
breve interlúdio, Yvan como seu amante –talvez, porque se deu conta da falta
que ele fazia, talvez para aplacar o desejo pela presença real de um homem que
os soldados lhe instigaram.
De qualquer modo, o diretor André Techiné joga
por terra a possibilidade de um romance logo na cena seguinte, quando desenha
um amargo desfecho para seu filme de maneira até bastante abrupta e incisiva.
Da forma como ficou, “Anjo
da Guerra” é um conto de empatia e fugas existenciais apoiado em dois grandes
personagens: Yvan, cuja indefinição em torno da real natureza é um dos motes
perenes do filme, e Odile, à qual Emmanuelle Béart acrescenta um encanto e um
magnetismo que chegam, neste filme, às raias do perturbador.
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