Caso real que escandalizou a crônica policial
francesa nos anos 1990, a trama que dá corpo ao filme de Nicole Garcia (de “Um Instante de Amor”) bebe da fonte de produções de suspense oriundas da França na
década de 2000, quando um grupo de jovens cineastas deu um revigorante sopro de
inovação gráfica e narrativa num gênero que não se furtava a chocar e a
perturbar o expectador.
Daniel Auteuil vive Jean-Marc Faure. De poucas
palavras, ele é casado com a devotada e carinhosa Christine (Geraldine Pailhas)
e trabalha como cirurgião conceituado. Sua vida financeira é estável. Sua vida familiar
é ideal e afetuosa.
Entretanto, há algo de dissimulado em
Jean-Marc. Ele não é quem diz ser.
Quando toma diariamente o caminho para seu
trabalho, Jean-Marc não vai em direção ao prestigiado hospital onde afirmar
trabalhar –ele passa horas dentro de seu carro em estacionamentos, às vezes, em
quartos de hotéis, ou até mesmo em outros locais.
Ao longo de vinte anos, ele foi hábil em
enganar seu círculo de amigos, sua família e sua própria esposa acerca de suas
atividades –que envolvem ocasionais estelionatos para ter sempre algum dinheiro
para ostentar.
Talvez, devido ao fato de narrar um
acontecimento relativamente conhecido e folclórico na França (algo como “Zodíaco”,
de David Fincher, foi para a cultura norte-americana), o filme da diretora
Nicole Garcia se permite a omissão nebulosa em inúmeros momentos, deixando
lacunas informativas sem serem preenchidas –essa opção e mais a ausência de
linearidade cronológica (outra característica muito em voga no cinema francês
da época) prejudicam e muito a compreensão integral do filme.
Iniciamos a trama já sabendo –por sequências que
prenunciam seu final trágico –que algo muito perturbador reserva o desenlace de
tanta dissimulação. Apesar de ter convencido seus amigos e seus familiares de
que era formado em medicina (embora mal tenha iniciado o curso), Jean-Marc,
após décadas se passando por alguém bem quisto e de alto cargo, pouco a pouco
se enreda numa sucessão de pequenos detalhes que vão minando a perfeição de seu
embuste: Um empréstimo de seu sogro para a compra de um carro; um reunião de
pais e mestres cujo debate levanta desconfianças de sua esposa; a ex-mulher de
um amigo (a insinuante Emmanuelle Devos) que se torna sua amante; e vários
outros pormenores que a narrativa sucinta, calma e atenciosa trata de enumerar
até que seja impossíveis de se ignorar.
A reação de Jean-Marc
diante da revelação iminente de sua farsa é, no entanto, assombrosa diante da
persona afável de doméstica que ele pareceu cultivar –e, nesse sentido, a
contida interpretação de Auteuil, rica em meandros humanos e mundanos, é
brilhante.
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