Há um senso incomum de denúncia nas obras de
Kaneto Shindo. Se na grande maioria dos trabalhos oriundos do cinema japonês,
os samurais exercem papéis heroicos e plenos de nobreza, em diversos trabalhos
de Shindo, eles ganham um retrato bem mais ambíguo.
A cena que abre “O Gato Preto” já é
poderosamente indicativa disso: Um grupo de samurais sujos, brutalizados e
mal-encarados chega interferindo na harmonia de uma cabana à beira de um
bambuzal.
Devoram a comida que lá encontram, e não têm
escrúpulos em violentar e matar as duas mulheres que lá estão, para depois atear
fogo no lugar, reduzindo-o a cinzas.
É o gatilho para a circunstância sobrenatural
que definirá o filme: Retornando como poderosos espíritos vingativos graças à
providência de um gato preto, as duas mulheres, a jovem (a linda Kiwako Taichi)
e a idosa (Nobuko Otowa), passarão a capturar incautos samurais transeuntes
todas as noites.
A jovem usa de sua beleza para fazer-se isca,
atraindo-os para uma cabana em meio à floresta, onde eles têm suas gargantas
brutalmente ceifadas –ao que parece, eles se converteram em uma espécie de
besta, misto de humano e felino.
O mestre Raiko (Kei Satô), o arrogante e
displicente líder samurai da região (além de tremendamente covarde) começa a se
alarmar com a quantia cada vez maior de guerreiros vitimados pelo que já é chamado,
pelo clamor popular de “Monstro do Portal Rajomon”.
Um a um, os homens que envia para resolver essa
questão são encontrados dilacerados.
A princípio, o dedicado soldado Gintoki do
Bosque (Kichiemon Nakamura) que surge com a cabeça de um inimigo de batalha lhe
parece ser só mais um dos tantos samurais que ele envia para tentar inutilmente
sanar o problema, mas Gintoki é, na realidade, o marido e o filho das duas
mulheres.
Em regresso da guerra na qual se ocupou por
três anos, ele encontra sua casa reduzida à cinzas, e nenhuma pista sequer do
paradeiro da esposa e da mãe. Ao partir para confrontar os tais fantasmas, ele
inicialmente não as reconhece, mas aos poucos percebe quem elas são
–entretanto, pela natureza de sua maldição, elas não podem revelar os motivos pelos
quais estão fazendo o que fazem, e isso não impede de representar, para Gintoki,
um dilema.
Mais do que opor seu protagonista entre o dever
(dar cabo dos fantasmas) e o bem querer (estar junto de sua família), o diretor
Shindo dedica mais tempo e atenção ao tímido, porém, eficaz erotismo que pulsa
da situação de Gintoki e sua bela esposa, cuja reunião carnal tão almejada por
ambos é um empecilho para a natureza sobrenatural dela.
As escolhas dolorosas que seus protagonistas
têm de fazer a partir daí representam os grandes impulsos dramáticos que
percebemos na narrativa.
Uma obra poderosa que
vislumbra o detalhe de que o mal, e todas as ramificações tóxicas decorrentes
dele, podem brotar em qualquer instância.
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