quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Nós

Artisticamente, Jordan Peele não parece nem um pouco interessado em deixar de lado o gênero no qual se consagrou graças ao brilhante “Corra!”: O terror impregnado de crítica social, em especial, voltado para a questão racial.
“Nós” é seu trabalho subsequente à sua obra consagrada (e, por isso, mesmo vem embalado numa auto-consciência do quanto tem de se provar enquanto realização cinematográfica), e é também uma renovação muito pessoal das convicções criativas e morais que norteiam o processo de Jordan Peele como contador de histórias.
Nota-se que Peele tem apreço em resgatar considerações do expediente de terror que não estão mais em voga –“Corra!”, guardadas as devidas proporções, evocava muito daquelas premissas de ‘cientista maluco’ sobre trocas mirabolantes de corpos e mentes. Já, “Nós” versa obre o mito do Doppelgänger –a duplicata maligna que supostamente cada um nós possui.
O filme abre com um texto afirmando a existência de linhas subterrâneas cortando o subsolo de todos os EUA; uma informação até corriqueira para o filme que se seguirá, mas indicativa do zelo autoral de seu realizador.
Ainda no ano de 1986, a pequena Adelaide tem um episódio assustador e traumático num parque de diversões à beira de uma praia, quando se perde por alguns momentos de seus pais.
Anos mais tarde (e agora interpretada pela sensacional Lupita Nyong’o), Adelaide é uma mulher adulta, casada com Gabe (Winston Duke, que assim como Lupita estava no elenco de “Pantera Negra”) e mãe de dois filhos, Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex).
Eles saem de férias como uma família normal, mas ao chegar na praia onde encontram o casal Josh (Tim Heidecker) e Kitty (Elizabeth Moss, das séries “Mad Men” e “The Handmaid’s Tale”), Adelaide se descobre aflita ao identificar elementos coincidentes que relacionam esse passeio com aquele sinistro ocorrido da sua infância, como a menção à passagem bíblica ‘Jeremias 11:11’ –“Portanto, assim diz Jeová: ‘Estou trazendo sobre eles uma calamidade da qual não poderão escapar. Quando clamarem a mim por socorro, eu não os escutarei’.”
E não deixa de ser uma calamidade, jogada sobre a humanidade (ou sobre os EUA), o que logo mais se segue.
Os temores impronunciáveis de Adelaide parecem se concretizar à noite, quando uma família de réplicas bizarras deles mesmos (e magistralmente interpretados pelos mesmos atores) surge à sua porta.
Variações defeituosas deles próprios –e envoltos numa atmosfera francamente amedrontadora –os assim chamados Acorrentados tentam dar cabo dos seus outros pares.
Escapando por pouco ilesos dessa circunstância tão perigosa quanto absurda, Adelaide e sua família veem a descobrir que o que vivenciaram está a se passar em todo o país: Outrora habitantes de uma sociedade subterrânea que, de alguma forma, passou despercebida da nossa, e integrada por criaturas que espelham cada indivíduo na superfície, essa sociedade decidiu dar um basta e sairam todos ao céu aberto dispostos a reclamar seu lugar no mundo e dar cabo daqueles que ocuparam sua posição, seus gêmeos da superfície.
Esse é um resumo muito superficial diante da variedade de percepções, sensibilidades e, sobretudo, reflexões, que Jordan Peele consegue suscitar com seu roteiro notável e sua direção rica em hábeis manejos do gênero.
Na sua concepção, a ironia macabra de um Doppelgänger é tanto uma providência divina perante nossa arrogância e pretensão (as frivolidades do capitalismo praticamente dominavam os diálogos antes da ameaça dar as caras), quanto um castigo à presunção norte-americana (por consequência, também um retrato de sua convulsiva paranóia) e um questionamento existencial acerca do que define aquilo que somos; e o que não somos –observação com a qual a espetacular reviravolta final vem confrontar o expectador que estiver achando que um filme de Jordan Peele é só mais um terror para se consumir.

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