quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Hana-Bi Fogos de Artifício

Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza em 1997, a obra que é vista pelos críticos como o fim de um ciclo na carreira de cineasta de Takeshi Kitano –no lamentável sentido de que tal ciclo representava seu auge criativo –tenta reaproveitar a mesma concepção desigual presente no maravilhoso “Sonatine”.
Como naquele trabalho, os esforços de Kitano no roteiro, na produção, na direção e na atuação como protagonista depositam os personagem, os elementos e até mesmo a premissa de um filme tipicamente policial num contexto atípico e inesperado, rico em contemplação e lirismo, bastante indicativo da natureza versátil e artística de seu realizador (e um tanto sintomático de um certo egocentrismo também), além de referencial, em certa postura narrativa, ao fundir a parcimônia do diretor Yasujiro Ozu com as circunstâncias criminais dos filmes de Jean-Pierre Melville.
Kitano vive o policial Nishi, um homem de poucas palavras (pouquíssimas, na verdade) cuja morte e a tragédia parecem cercá-lo por todos os lados. Ele se recupera do falecimento da própria filha resignando-se na seriedade do trabalho, contudo, sua esposa (Kayoko Kishimoto) padece no hospital; e as perspectivas dos médicos não são nada animadoras.
Além de amargar as lembranças incômodas da morte de um jovem colega policial em um tiroteio provocado –ele imagina –por seu temperamento irredutível, Nishi também precisa lidar com uma emboscada feita contra seu melhor amigo, Horibe (Ren Osuge, de “A Cura” e “O Samurai do Entardecer”), cilada da qual escapou com vida, porém, paraplégico.
Essa sucessão de infortúnios levam Nishi –que tem, também ele, lá as suas dívidas com os yakuzas –a arquitetar lentamente um plano: Disfarçar-se de guarda de trânsito e assaltar um banco de onde irá tirar dinheiro o bastante para colocar sua vida –e a de seus entes próximos –em ordem; ou o mais perto possível disso...
Narrado com serenidade espartana (alguns diriam, em ritmo deliberadamente lento mesmo!) e composto por frames intercalados cujos ângulos independentes os tornam quadros interligados por um fio condutor de tal maneira tênue que, em sua primeira meia hora, o expectador precisa fazer certo esforço para manter-se atento ao fio da meada da trama, esta obra de Takeshi Kitano abstêm-se de expectativas fornecidas ao expectador –e, por isso, a história, a despeito de seu caráter tremendamente disperso, sugere a possibilidade de seguir em qualquer direção.
O rumo que Kitano escolhe exemplifica seu estilo autoral: De posse do dinheiro, Nishi segue um plano nebuloso onde o vemos sair em viagem ao lado da esposa, na descoberta de uma certa alegria que os dramas passados afastaram. Ao mesmo tempo, ele envia presentes aos amigos –alguns enigmáticos em suas embalagens misteriosas que nunca são mostradas abertas lembrando as alegorias de Luis Buñuel –como Horibe e a jovem viúva de Tanaka, o jovem policial morto.
Todavia, as pendências não tardam a encontrar Nishi –os yakuzas vão atrás dele, mesmo tendo toda sua dívida quitada, com pretextos cabotinos para extorquir-lhe mais dinheiro; e alguns policiais de seu distrito também têm lá uma trilha de pistas acerca do assalto à banco que levam até Nishi.
O protagonista de Kitano espelha o próprio filme que estrela no sentido de que é um homem brutal e truculento –e não raro, surge ao centro de algumas cenas súbitas e desconcertantes de violência que aqui e ali irrompem a calmaria da narrativa –mas, é também alguém sensível à aflição interior da própria esposa e ao desamparo do melhor amigo. Calado, ele deixa que todos os demais coadjuvantes orbitem à sua volta e falem sem parar, deixando-o como uma figura fixa no filme, cujas reais impressões absorvemos através das expressões, também elas um bocado impenetráveis, do ator Kitano.
O propósito disso é meio que revelado ao fim, quando percebemos que o personagem tem uma arma com duas balas em seu tambor. Mas, para quem elas são? Para os dois policiais (e amigos) que, por fim, o encontraram? Ou para ele próprio e a esposa, no que seria então a reta final de seu plano?
Atento à beleza dessas nuances em seu trabalho, Kitano não fornece uma resposta tornando o impacto emocional de “Hana-Bi” muito mais perene.

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