Após dois projetos aclamados (e de
surpreendente cunho erótico) em colaboração com Ozamu Tezuka, “As Mil e Uma Noites” e “Cleopatra”, o diretor Eiich Yamamoto, enveredou em 1973 por uma nova
animação que mergulhasse com ainda mais contundência naquilo que mais lhe
interessava, os conflitos dilacerantes de ordem íntima em seus personagens,
compondo assim a terceira parte do que passou a ser chamada de “Trilogia
Animerama”. Para tanto, Yamamoto baseou-se em um clássico relato histórico de
autoria de Jules Michelet, ambientado da França Medieval e diretamente inspirado
no inferno da Inquisição. Assim nasceu “A Tragédia de Belladonna”.
Diferenciado do que se passou a presumir como
convencional na animação japonesa –na verdade, diferente de qualquer coisa que
se presume como convencional em animação –“A Tragédia de Belladonna” é uma
realização pulsante em experimentalismo, cujos trechos animados surgem
relativamente tímidos, mesmo para a época em que são feitos: Os personagens,
por exemplo, não movimentam a boca ao falar; a dublagem dos atores, mesmo
durante diálogos ou monólogos, surge quase refletiva diante das feições
imutáveis que ostentam. Tal recurso, na narrativa de Yamamoto, não aparece como
limitação técnica; ele quer, de imediato, impor uma atmosfera distinta ao seu
trabalho, uma sensação de inadequação e ar rarefeito que logo prenuncia, na
sensibilidade do expectador, uma impressão iminente de tragédia.
E não é à toa.
Casal apaixonado já nas primeiras cenas
–acompanhadas também pela música de Masahiko Sato que narra o colorido etéreo de seu romance –os jovens e
humildes camponeses Jean e Jeanne decidem se casar. Em sua noite de núpcias, ao
implorar pela benção do nobre local, o Barão, o dois jovens têm uma ideia da profundidade
aterradora da maldade dos aristocratas.
É a própria Baronesa quem sugere que o Barão
seja o primeiro a deflorar a até então imaculada noiva, seguido de todos os
seus degenerados e ofegantes súditos, enquanto Jean é jogado e trancado do lado
de fora do castelo –e as ponderadas opções experimentais presentes na incomum
narrativa de Yamamoto já começam aí, nessas cenas tão desconcertantes quanto
transgressoras, a justificar a que vieram.
Jeanne regressa para sua casa na aldeia, e para
um desconsolado Jean e uma espécie de mancha já assombrando seu casamento. Nos
dias que se seguem, uma visita inesperada acomete Jeanne durante o sono –o
próprio Diabo, na voz portentosa de Tatsuya Nakadai (de “Ran”), assumindo
formas inesperadas (uma névoa vermelha, uma pequena criatura a se esgueirar por
suas partes íntimas, uma sombra, ora furtiva, ora imponente) propõe à ela um
acordo, ceder seu corpo e sua alma em troca de poder para perpetrar uma
vingança.
Jeanne não deseja, sobremaneira, ceder sua
alma, mas, no êxtase lúbrico de seus encontros noturnos, ela concorda em ceder
o seu corpo –o despudor com que a animação de Yamamoto explora a nudez de sua
personagem protagonista se revela ainda mais audacioso que em seus trabalhos
anteriores. Assim, Jeanne e Jean experimentam uma certa prosperidade entre os
aldeões –ele, consegue um cargo de cobrador de impostos, com o qual ascende
socialmente –embora não deixe de haver certo ônus: Os aldeões passam a olhar
com respeito, mas também temor e desconfiança para Jeanne, fuxicando sobre o
suposto pacto com o Diabo que lhes permitiu seus júbilos.
Todavia, as coisas não tardam a descambar para
o pior: Sem arrecadar impostos o bastante dos empobrecidos aldeões, o Barão
pune Jean cortando-lhe a mão esquerda (!), enquanto Jeanne cuja notoriedade na
aldeia –além da grande beleza –lhe rendeu algum respeito começa a despertar com
isso as invejas da Baronesa. Ela incita vários de seus súditos, e o próprio
Barão, contra Jeanne, o quê, numa ocasião, culmina com ela tendo suas vestes
rasgadas e sendo perseguida. Jean, fraco e covarde devidos aos flagelos já
sofridos, lhe fecha as portas de casa, o que leva Jeanne a singrar, nua,
floresta adentro, onde ela se encontra, mais uma vez com o capeta; terminando,
por fim, de entregar-se a ele.
Dessa aliança, Jeanne emerge bela e dotada da
habilidade da feitiçaria. Ela usa os novos conhecimentos para livrar a
população da terrível peste negra que os consome, porém, em troca, instiga
neles os preceitos liberais, sexuais e, em última instância, satânicos de seu novo
mestre.
A situação chega a afetar o Barão quando este
se vê obrigado a matar a própria Baronesa e seu vassalo, depois de flagra-los
juntos na cama: O vassalo, apaixonado pelo Baronesa, requisitou a Jeanne uma
poção que concretizasse os ardentes desejos por sua senhora.
Usando do próprio Jean para persuadi-la a sair
da floresta na qual passou a protagonizar orgias (!), o Barão captura Jeanne no
palácio e a sentencia à morrer crucificada na fogueira, contudo, na narrativa
cada vez mais elíptica e alegórica de Yamamoto, à medida que sua obra caminha
para o desfecho, nos é revelado que Jeanne “se tornou” as outras mulheres da
aldeia, inspirando atos que, nos anos e séculos vindouros acarretaram as
primeiras mudanças irreversíveis naquela estrutura de sociedade, como a Queda
da Bastilha.
Ancorando sua animação
deliberadamente datada com um trabalho impecável de acabamento pictório e
artístico –plenamente enfatizado na restauração recentemente sofrida pela obra
–“A Tragédia de Belladonna” alterna cenas de imagens estáticas com momentos
ocasionalmente animados e truques visuais
que emulam notáveis tomadas panorâmicas, todos aclimatados por uma sinistra
narração, trabalhando em conjunto para moldar um dos mais peculiares, contundentes,
psicodélicos e lendários exemplares da animação japonesa de todos os tempos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário