quarta-feira, 27 de maio de 2020

A Tragédia de Belladonna

Após dois projetos aclamados (e de surpreendente cunho erótico) em colaboração com Ozamu Tezuka, “As Mil e Uma Noites” e “Cleopatra”, o diretor Eiich Yamamoto, enveredou em 1973 por uma nova animação que mergulhasse com ainda mais contundência naquilo que mais lhe interessava, os conflitos dilacerantes de ordem íntima em seus personagens, compondo assim a terceira parte do que passou a ser chamada de “Trilogia Animerama”. Para tanto, Yamamoto baseou-se em um clássico relato histórico de autoria de Jules Michelet, ambientado da França Medieval e diretamente inspirado no inferno da Inquisição. Assim nasceu “A Tragédia de Belladonna”.
Diferenciado do que se passou a presumir como convencional na animação japonesa –na verdade, diferente de qualquer coisa que se presume como convencional em animação –“A Tragédia de Belladonna” é uma realização pulsante em experimentalismo, cujos trechos animados surgem relativamente tímidos, mesmo para a época em que são feitos: Os personagens, por exemplo, não movimentam a boca ao falar; a dublagem dos atores, mesmo durante diálogos ou monólogos, surge quase refletiva diante das feições imutáveis que ostentam. Tal recurso, na narrativa de Yamamoto, não aparece como limitação técnica; ele quer, de imediato, impor uma atmosfera distinta ao seu trabalho, uma sensação de inadequação e ar rarefeito que logo prenuncia, na sensibilidade do expectador, uma impressão iminente de tragédia.
E não é à toa.
Casal apaixonado já nas primeiras cenas –acompanhadas também pela música de Masahiko Sato que narra  o colorido etéreo de seu romance –os jovens e humildes camponeses Jean e Jeanne decidem se casar. Em sua noite de núpcias, ao implorar pela benção do nobre local, o Barão, o dois jovens têm uma ideia da profundidade aterradora da maldade dos aristocratas.
É a própria Baronesa quem sugere que o Barão seja o primeiro a deflorar a até então imaculada noiva, seguido de todos os seus degenerados e ofegantes súditos, enquanto Jean é jogado e trancado do lado de fora do castelo –e as ponderadas opções experimentais presentes na incomum narrativa de Yamamoto já começam aí, nessas cenas tão desconcertantes quanto transgressoras, a justificar a que vieram.
Jeanne regressa para sua casa na aldeia, e para um desconsolado Jean e uma espécie de mancha já assombrando seu casamento. Nos dias que se seguem, uma visita inesperada acomete Jeanne durante o sono –o próprio Diabo, na voz portentosa de Tatsuya Nakadai (de “Ran”), assumindo formas inesperadas (uma névoa vermelha, uma pequena criatura a se esgueirar por suas partes íntimas, uma sombra, ora furtiva, ora imponente) propõe à ela um acordo, ceder seu corpo e sua alma em troca de poder para perpetrar uma vingança.
Jeanne não deseja, sobremaneira, ceder sua alma, mas, no êxtase lúbrico de seus encontros noturnos, ela concorda em ceder o seu corpo –o despudor com que a animação de Yamamoto explora a nudez de sua personagem protagonista se revela ainda mais audacioso que em seus trabalhos anteriores. Assim, Jeanne e Jean experimentam uma certa prosperidade entre os aldeões –ele, consegue um cargo de cobrador de impostos, com o qual ascende socialmente –embora não deixe de haver certo ônus: Os aldeões passam a olhar com respeito, mas também temor e desconfiança para Jeanne, fuxicando sobre o suposto pacto com o Diabo que lhes permitiu seus júbilos.
Todavia, as coisas não tardam a descambar para o pior: Sem arrecadar impostos o bastante dos empobrecidos aldeões, o Barão pune Jean cortando-lhe a mão esquerda (!), enquanto Jeanne cuja notoriedade na aldeia –além da grande beleza –lhe rendeu algum respeito começa a despertar com isso as invejas da Baronesa. Ela incita vários de seus súditos, e o próprio Barão, contra Jeanne, o quê, numa ocasião, culmina com ela tendo suas vestes rasgadas e sendo perseguida. Jean, fraco e covarde devidos aos flagelos já sofridos, lhe fecha as portas de casa, o que leva Jeanne a singrar, nua, floresta adentro, onde ela se encontra, mais uma vez com o capeta; terminando, por fim, de entregar-se a ele.
Dessa aliança, Jeanne emerge bela e dotada da habilidade da feitiçaria. Ela usa os novos conhecimentos para livrar a população da terrível peste negra que os consome, porém, em troca, instiga neles os preceitos liberais, sexuais e, em última instância, satânicos de seu novo mestre.
A situação chega a afetar o Barão quando este se vê obrigado a matar a própria Baronesa e seu vassalo, depois de flagra-los juntos na cama: O vassalo, apaixonado pelo Baronesa, requisitou a Jeanne uma poção que concretizasse os ardentes desejos por sua senhora.
Usando do próprio Jean para persuadi-la a sair da floresta na qual passou a protagonizar orgias (!), o Barão captura Jeanne no palácio e a sentencia à morrer crucificada na fogueira, contudo, na narrativa cada vez mais elíptica e alegórica de Yamamoto, à medida que sua obra caminha para o desfecho, nos é revelado que Jeanne “se tornou” as outras mulheres da aldeia, inspirando atos que, nos anos e séculos vindouros acarretaram as primeiras mudanças irreversíveis naquela estrutura de sociedade, como a Queda da Bastilha.
Ancorando sua animação deliberadamente datada com um trabalho impecável de acabamento pictório e artístico –plenamente enfatizado na restauração recentemente sofrida pela obra –“A Tragédia de Belladonna” alterna cenas de imagens estáticas com momentos ocasionalmente animados e truques  visuais que emulam notáveis tomadas panorâmicas, todos aclimatados por uma sinistra narração, trabalhando em conjunto para moldar um dos mais peculiares, contundentes, psicodélicos e lendários exemplares da animação japonesa de todos os tempos.

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