Em meados de 2003, a carreira da atriz Charlize
Theron havia entrado numa seara complicada: Embora já tivesse estagnado ao
estrelar projetos genéricos que insistiam em rotulá-la –sobretudo, diante da
grande beleza –como os pouco notáveis “Doce Novembro”, “Lendas da Vida” e
“Encurralados”, ela também não havia ainda atingido um status que a
consolidasse como estrela.
A saída para ser vista como fulgurante atriz
capaz de reinventar-se quando necessário aos olhos da indústria –e, se possível,
levar uns prêmios pelo esforço –surgiu quando ela decidiu radicalizar e
estrelar (além de produzir) o filme independente de estréia da diretor Patty
Jenkins, que atrevia-se a biografar a trajetória (ou, ao menos parte dela) de
Aileen Wuornos, a primeira mulher condenada à morte na cadeira elétrica sob acusação
de ser uma serial-killer.
De fato, para o papel, Charlize transformou-se:
Deixou de lado a pele macia e bem cuidada, colocou próteses dentárias que
alteraram drasticamente o aspecto de seu rosto, pôs lentes de contato castanhas
sobre seus lindos olhos azuis, e engordou alguns quilos –uma metamorfose
completa como os membros da Academia costumam adorar e enaltecer de tempos em
tempos: Desnecessário dizer, portanto, que esse esforço lhe valeu o Oscar 2004
de Melhor Atriz, além do Globo de Ouro de Melhor Atriz Dramática e o Urso de
Prata no Festival de Berlim. Lhe valeu também um sopro de renovação na
carreira: A partir de então, Charlize passou a ser requisitada para projetos
mais nobres e distintos, com realizadores confortáveis com sua capacidade e
versatilidade, uma chance e tanto para um carreira que provou-se merecedora:
Ela tornou a concorrer ao Oscar em outras duas ocasiões (em 2006, por “Terra
Fria” e neste ano mesmo, por “O Escândalo”), compareceu em projetos tão
distintos e audaciosos como a ação “Atômica”, a ficção científica “A Estrada”
e a aventura “Branca de Neve e O Caçador”, e marcou presença numa das mais prestigiadas produções dos últimos
tempos: “Mad Max-Estrada da Fúria”.
Muito disso se deve à Aileen Wuornos, papel que
ela desempenha com ferocidade do início ao fim deste filme carregado de
desilusão.
Prostituta de rua desde os 13 anos de idade,
Aileen –como notamos na narração em off que acompanha o filme –ainda acreditava
num amanhã melhor e no ‘sonho americano’, alimentada por certa ingenuidade, uma
característica que, no caso dela em especial, flertava com certa insanidade.
Chegando por acaso num bar gay, Aileen conhece a jovem e deslocada Selby Wall
(Christina Ricci, presença assídua de produções independentes naqueles anos),
cuja homossexualidade a tornou uma pária aos olhos da família.
Embora não fosse lésbica e verbalizasse a pouca
vontade de se relacionar com Selby, Aileen, talvez motivada pela própria
carència, acaba por se envolver com ela. Quando a convence a deixar a casa dos
tios onde morava, Aileen a engana (e, em certa medida, engana a si própria
também) com uma história na qual deixará de ser prostituta e arrumará um
emprego onde ganhará dinheiro para que as duas possam viver bem.
Ao confrontar Aileen com o exato oposto daquilo
que sonhava, a diretora Patty Jenkins desmonta cada uma das facetas do
‘american way of life’, escancarando para a plateia uma América medíocre, suja,
amoral, doentia e amargurada.
Contudo, as razões da terrível derrocada de sua
protagonista já estavam plantadas antes mesmo disso: Quando ainda tentava obter
dinheiro para o segundo encontro com Selby, Aileen decide fazer alguns
programas. Ela entra no carro de um cliente que a amarra e tenta estuprá-la com
uma chave de roda (!), mas consegue soltar-se e o mata a tiros.
Mais tarde, conforme se dá conta de que a
polícia não conseguiu avançar nas investigações acerca do homicídio, e de que
suas chances para tentar um emprego honesto no mercado de trabalho são ínfimas,
Aileen vai, aos poucos, se convencendo de que os homens pérfidos que atendia
eram, em geral, merecedores do fim violento que ela acabou lhes dando. Ela
tenta acreditar que os matava para proteger-se, mas as mortes –nas quais
desovava o corpo, pegava o dinheiro e ficava com o carro das vítimas –vão se
somando de tal maneira que, nos finalmentes, Aileen matava pessoas inocentes de
fato, que apenas lhe davam carona, alheios ao fato de que era prostituta.
A diretora Patti Jenkins nem tanto enfatiza
esse aspecto ‘serial-killer’ da personagem e do filme, como prefere, muito
mais, vislumbrar com atenção e minúcia, os caminhos pedregosos que a levaram
até lá. Nesse sentido, é realmente primoroso o trabalho de interpretação de
Charlize Theron: Ela emprega os maneirismos que definem Aileen como mecanismos
de defesa para ela proteger-se da inclemência do mundo, mostrando a
protagonista, em sua inaptidão, se converter quase sem notar numa assassina,
enquanto se abastece da certeza ilusória de que está trilhando um caminho rumo
ao seu sonho.
Como é inevitável num filme
com essa proposta, “Monster” abandona o expectador com um sabor amargo na boca
e com as imagens de um deprimente registro de seres à margem de uma sociedade
obcecada pelo sucesso mas capaz de esmagar com inapelável crueldade os seus
fracassados.
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