No que parece ser a Polônia dos anos 1930, testemunhamos a tragédia na vida de Michal (Leszek Teleszynski) –quando tem a esposa e o filho pequeno mortos por soldados invasores, alemães e soviéticos –que dá o estopim inicial a toda a narrativa de dor, terror e loucura engendrada pelo diretor Andrzej Zulawski, nesta primeira de suas inacreditáveis experiências em longa-metragens.
“A Terça Parte da Noite” parte de um enigmático
trecho do Apocalypse, da Bíblia, para pavimentar com nebulosas alegorias de
natureza religiosa, a trajetória desse desafortunado Michal: Após perder a
família, ele se vê nessa cidade polonesa, onde soldados ameaçadores o perseguem,
tanto da parte dos alemães nazistas quando do exército vermelho da URSS. Escapa
deles por um triz –mas, não seu amigo, morto brutalmente na ocasião –e termina
auxiliando uma jovem grávida em seu parto, tendo o marido dela sido confundido
com Michal e aprisionado pelos alemães.
A Gestapo patrulha todas as ruas e todos os
lugares.
Corroído por uma culpa que não se esgota, e
abalado por uma indistinção da realidade que se descortina à sua volta (que
pode estar sendo distorcida por lapsos de loucura de sua parte), Michal tenta
ajudar essa mulher e seu filho recém-nascido, e nesse fluxo, envolve-se num
laboratório cujas experiências com piolhos visam encontrar a cura para a febre
tifóide.
É um estranho ciclo vicioso: Michal oferece de
bom grado o próprio sangue, a fim de fortalecer os piolhos para os propósitos
da experiência, e recebe mantimentos para prover a mãe e o bebê, refugiados num
convento –contexto de apavorante absurdo inspirado no que o próprio pai de
Zulawski, Miroslaw, vivenciou durante a guerra em um instituto da Cracóvia.
Lá, tudo é soturno. Tudo é desesperançoso. E
Zulawski não sinaliza com qualquer lampejo de otimismo no horizonte: O jugo
cada vez mais insuportável das forças invasoras tornam a sobrevivência por lá
um esforço vazio e impraticável.
A Polônia, no período Pós-Primeira Guerra
Mundial, foi invadida pela União Soviética e pela Alemanha na primeira de
muitas incursões hostis que desembocaram na Segunda Guerra Mundial; e o diretor
Andrzej Zulawski se vale desse recorte histórico para versar, nesta parábola
sombria e lúgubre, sobre a identidade –a identidade que tentamos manter em face
do que pode ser o fim do mundo, ou do que pode ser o fim da razão; e início,
portanto, da loucura. Com efeito, é razoável que seu filme se perca na
indefinição do que é real ou não ao longo de seus acontecimentos.
Nesse delírio que ele permite engolir o filme,
Zulawski promove a colisão de dois conceitos opostos, antagônicos: O objetivo
(a realidade, portanto, a guerra) e o subjetivo (a loucura). Com isso, muito do
que vemos na trama ganha assim um duplo significado à luz dessas duas possibilidades.
E como se sabe, o cinema da Zulawski é, de fato, o cinema dos duplos.
Essa percepção aparece, sobretudo, na
semelhança surreal, assombrosa e assombrada entre Helena, a esposa brutalmente
morta de Michal, e Martha, a mãe de cujo filho ele faz o parto (e tal efeito
não é à toa; ambas são interpretadas pela mesma atriz, Malgorzata Braunek). O
combustível que confere a Michal motivação é a culpa pela captura do marido de
Martha, entretanto, no enigma cinematográfico que monta, Zulawski se atreve a
lançar uma dúvida insolúvel ao público: Quem em seu filme realmente é o que
aparenta?
Afinal, Michal é o protagonista trágico que
literalmente acompanhamos, ou o marido de Martha de fato, cujo destino
descobrimos num final ainda mais indecifrável com o surgimento de outra
duplicata? Essas dúvidas, terminam também contaminando as personagens
Helena/Martha: Elas são de fato pessoas diferentes? Ou a mesma pessoa cuja
culpa de Michal fragmentou em alucinações e aparições que ele procura compensar
na narrativa, até descobrir, ao fim, a terrível verdade?
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