sexta-feira, 23 de outubro de 2020

A Terça Parte da Noite


 No que parece ser a Polônia dos anos 1930, testemunhamos a tragédia na vida de Michal (Leszek Teleszynski) –quando tem a esposa e o filho pequeno mortos por soldados invasores, alemães e soviéticos –que dá o estopim inicial a toda a narrativa de dor, terror e loucura engendrada pelo diretor Andrzej Zulawski, nesta primeira de suas inacreditáveis experiências em longa-metragens.

“A Terça Parte da Noite” parte de um enigmático trecho do Apocalypse, da Bíblia, para pavimentar com nebulosas alegorias de natureza religiosa, a trajetória desse desafortunado Michal: Após perder a família, ele se vê nessa cidade polonesa, onde soldados ameaçadores o perseguem, tanto da parte dos alemães nazistas quando do exército vermelho da URSS. Escapa deles por um triz –mas, não seu amigo, morto brutalmente na ocasião –e termina auxiliando uma jovem grávida em seu parto, tendo o marido dela sido confundido com Michal e aprisionado pelos alemães.

A Gestapo patrulha todas as ruas e todos os lugares.

Corroído por uma culpa que não se esgota, e abalado por uma indistinção da realidade que se descortina à sua volta (que pode estar sendo distorcida por lapsos de loucura de sua parte), Michal tenta ajudar essa mulher e seu filho recém-nascido, e nesse fluxo, envolve-se num laboratório cujas experiências com piolhos visam encontrar a cura para a febre tifóide.

É um estranho ciclo vicioso: Michal oferece de bom grado o próprio sangue, a fim de fortalecer os piolhos para os propósitos da experiência, e recebe mantimentos para prover a mãe e o bebê, refugiados num convento –contexto de apavorante absurdo inspirado no que o próprio pai de Zulawski, Miroslaw, vivenciou durante a guerra em um instituto da Cracóvia.

Lá, tudo é soturno. Tudo é desesperançoso. E Zulawski não sinaliza com qualquer lampejo de otimismo no horizonte: O jugo cada vez mais insuportável das forças invasoras tornam a sobrevivência por lá um esforço vazio e impraticável.

A Polônia, no período Pós-Primeira Guerra Mundial, foi invadida pela União Soviética e pela Alemanha na primeira de muitas incursões hostis que desembocaram na Segunda Guerra Mundial; e o diretor Andrzej Zulawski se vale desse recorte histórico para versar, nesta parábola sombria e lúgubre, sobre a identidade –a identidade que tentamos manter em face do que pode ser o fim do mundo, ou do que pode ser o fim da razão; e início, portanto, da loucura. Com efeito, é razoável que seu filme se perca na indefinição do que é real ou não ao longo de seus acontecimentos.

Nesse delírio que ele permite engolir o filme, Zulawski promove a colisão de dois conceitos opostos, antagônicos: O objetivo (a realidade, portanto, a guerra) e o subjetivo (a loucura). Com isso, muito do que vemos na trama ganha assim um duplo significado à luz dessas duas possibilidades. E como se sabe, o cinema da Zulawski é, de fato, o cinema dos duplos.

Essa percepção aparece, sobretudo, na semelhança surreal, assombrosa e assombrada entre Helena, a esposa brutalmente morta de Michal, e Martha, a mãe de cujo filho ele faz o parto (e tal efeito não é à toa; ambas são interpretadas pela mesma atriz, Malgorzata Braunek). O combustível que confere a Michal motivação é a culpa pela captura do marido de Martha, entretanto, no enigma cinematográfico que monta, Zulawski se atreve a lançar uma dúvida insolúvel ao público: Quem em seu filme realmente é o que aparenta?

Afinal, Michal é o protagonista trágico que literalmente acompanhamos, ou o marido de Martha de fato, cujo destino descobrimos num final ainda mais indecifrável com o surgimento de outra duplicata? Essas dúvidas, terminam também contaminando as personagens Helena/Martha: Elas são de fato pessoas diferentes? Ou a mesma pessoa cuja culpa de Michal fragmentou em alucinações e aparições que ele procura compensar na narrativa, até descobrir, ao fim, a terrível verdade?

Como o idealizador de todo sonho (ou pesadelo) recorrente, não interessa a Zulawski fornecer respostas claras e sólidas ao expectador: O polonês é fascinado pela sensação de ar rarefeito obtida quando a certeza se vê extirpada de nossas considerações e pelo asfixiante clima opressor que ele molda a partir das mais aterradoras facetas da insensatez humana.

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