Marcante estréia do artista plástico e cineasta Shinya Tsukamoto no cinema, “Tetsuo” é uma obra de baixo orçamento amparada em muitos conceitos de gênero que afloraram ao longo da segunda metade do Século XX fragmentando a ficção científica em várias sub-categorias.
Algo nele parece remeter ao pesadelo em preto
& branco, ambientado nos escombros de um mundo industrial, de “Eraserhead”,
de David Lynch, com efeito, ele remete também o cinema de David Cronenberg e
seu fascínio pela simbiose de ordem fisiológica entre os organismos humano e
maquinário (especialmente exemplificado em “eXistenZ” e “Videodrome”) levando à
novas e aterradoras mutações.
A premissa –cuja história serviria de pretexto
para esses fenômenos –é, quando muito, enigmática, surgindo como um
quebra-cabeças intrincado a medida que a narrativa fornece pistas
escorregadias, contraditórias e nada confiáveis acerca do que de fato aconteceu
enquanto seu ritmo frenético (a lembrar a insanidade de um videoclip
vanguardista) tritura os nervos do expectador com um turbilhão de sarcasmo,
pesadelo kafkiano, drama humano e humor negro.
Nas dependências de um paupérrimo ferro-velho,
vemos um personagem (vivido pelo próprio Tsukamoto) infligir em si mesmo um
corte profundo na altura do fêmur, e nele introduzir uma barra de aço –a
fotografia em preto & branco impede que as cenas que justapõe carne e
sangue com peças de metal e sucata sejam visualmente díspares e desleixadas
–não sem deixar de sentir uma dor excruciante. Logo, outro personagem nos é
mostrado: Um homem de terno e óculos (Tomorowo Tagushi) perseguido por
pesadelos cibernéticos –num ponto de ônibus, ele sonha com uma mulher (Nobu
Kanaoka) que, convertida num cyborgue, o persegue antes de despertar. Tal
pesadelo parece ter ligação com um atropelamento que ele e sua esposa (Fujiwara
Kei) praticaram, e cuja vítima abandonaram numa floresta sem prestar
assistência –é pois, o homem visto no ferro-velho.
A trama de “Tetsuo” –se é que existe uma para
ser apreendida –mostra possivelmente esse homem atropelado sobrevivendo graças
à improváveis e gaiatos implantes de metal em seu corpo feitos à ferro e fogo
(!). Convertido num ser meio homem, meio máquina, ele resolve aplicar a mesma
sina ao responsável por seu suplício; o homem de óculos. Ou assim é, pelo
menos, o que mais parece fazer sentido; pedaços mecânicos vão surgindo em seu
corpo à medida que ele e sua esposa nada podem fazer a não ser ficarem estarrecidos
com isso –incluindo grotescas próteses no rosto e uma broca no lugar do pênis
(!).
Essas transformações vão se somando cada vez
mais fazendo do espaço confinado de seu apartamento (o cenário predominante do
filme) o palco para uma metamorfose sinistra.
Despido de uma produção mais elaborada
–elemento que Shinya Tsukamoto teve à sua disposição em “Tetsuo 2-O Homem-Bala”
que não era uma continuação, mas uma espécie de refilmagem deste filme –o
diretor vale-se justamente dessa restrição precária para ressaltar os aspectos
tortuosos de sua realização, e emprega as insuficiências de ordem técnica em
seu trabalho como elipses de natureza reflexiva: Em “Tetsuo”, os elementos
nunca esboçados com precisão –como o duvidoso processo de transformação pelo
qual se dá o ato de vingança central –podem ter suas lacunas preenchidas com
inúmeras divagações e considerações alegóricas em torno da relação do ser
humano com a tecnologia, e a irreversível transformação dos costumes que isso
agrega.
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