terça-feira, 10 de novembro de 2020

Tetsuo - O Homem de Ferro

 


Marcante estréia do artista plástico e cineasta Shinya Tsukamoto no cinema, “Tetsuo” é uma obra de baixo orçamento amparada em muitos conceitos de gênero que afloraram ao longo da segunda metade do Século XX fragmentando a ficção científica em várias sub-categorias.

Algo nele parece remeter ao pesadelo em preto & branco, ambientado nos escombros de um mundo industrial, de “Eraserhead”, de David Lynch, com efeito, ele remete também o cinema de David Cronenberg e seu fascínio pela simbiose de ordem fisiológica entre os organismos humano e maquinário (especialmente exemplificado em “eXistenZ” e “Videodrome”) levando à novas e aterradoras mutações.

A premissa –cuja história serviria de pretexto para esses fenômenos –é, quando muito, enigmática, surgindo como um quebra-cabeças intrincado a medida que a narrativa fornece pistas escorregadias, contraditórias e nada confiáveis acerca do que de fato aconteceu enquanto seu ritmo frenético (a lembrar a insanidade de um videoclip vanguardista) tritura os nervos do expectador com um turbilhão de sarcasmo, pesadelo kafkiano, drama humano e humor negro.

Nas dependências de um paupérrimo ferro-velho, vemos um personagem (vivido pelo próprio Tsukamoto) infligir em si mesmo um corte profundo na altura do fêmur, e nele introduzir uma barra de aço –a fotografia em preto & branco impede que as cenas que justapõe carne e sangue com peças de metal e sucata sejam visualmente díspares e desleixadas –não sem deixar de sentir uma dor excruciante. Logo, outro personagem nos é mostrado: Um homem de terno e óculos (Tomorowo Tagushi) perseguido por pesadelos cibernéticos –num ponto de ônibus, ele sonha com uma mulher (Nobu Kanaoka) que, convertida num cyborgue, o persegue antes de despertar. Tal pesadelo parece ter ligação com um atropelamento que ele e sua esposa (Fujiwara Kei) praticaram, e cuja vítima abandonaram numa floresta sem prestar assistência –é pois, o homem visto no ferro-velho.

A trama de “Tetsuo” –se é que existe uma para ser apreendida –mostra possivelmente esse homem atropelado sobrevivendo graças à improváveis e gaiatos implantes de metal em seu corpo feitos à ferro e fogo (!). Convertido num ser meio homem, meio máquina, ele resolve aplicar a mesma sina ao responsável por seu suplício; o homem de óculos. Ou assim é, pelo menos, o que mais parece fazer sentido; pedaços mecânicos vão surgindo em seu corpo à medida que ele e sua esposa nada podem fazer a não ser ficarem estarrecidos com isso –incluindo grotescas próteses no rosto e uma broca no lugar do pênis (!).

Essas transformações vão se somando cada vez mais fazendo do espaço confinado de seu apartamento (o cenário predominante do filme) o palco para uma metamorfose sinistra.

Despido de uma produção mais elaborada –elemento que Shinya Tsukamoto teve à sua disposição em “Tetsuo 2-O Homem-Bala” que não era uma continuação, mas uma espécie de refilmagem deste filme –o diretor vale-se justamente dessa restrição precária para ressaltar os aspectos tortuosos de sua realização, e emprega as insuficiências de ordem técnica em seu trabalho como elipses de natureza reflexiva: Em “Tetsuo”, os elementos nunca esboçados com precisão –como o duvidoso processo de transformação pelo qual se dá o ato de vingança central –podem ter suas lacunas preenchidas com inúmeras divagações e considerações alegóricas em torno da relação do ser humano com a tecnologia, e a irreversível transformação dos costumes que isso agrega.

Em sua alusão ao terror improvável e inconsequente dos filmes B, a obra inquieta e incômoda de Shynia Tsukamoto extrai analogias carregadas de significado de um subtexto onde um cyborgue vingativo impõe seu próprio infortúnio ao seu antagonista, rodeados por outras metáforas de interpretações afins; como a personagem da esposa que, antes de terminar empalada pela broca fálica (numa cena sanguinária e absurda ao extremo!), se esvai em outro tipo de simbiose, desta vez, com flores e plantas (!).

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