Poucas obras dos anos 1980 são tão sujeitas à incompreensão maciça do público (e, por que não, da crítica) quanto “Liquid Sky”. Sensual, lisérgico, debochado, despudorado e incontornavelmente estranho, este filme norte-americano dirigido pelo russo Slava Tsukerman (em plena Gerra Fria!) é um retrato algo afetado e inapreensível da cena new wave nova iorquina de então, uma evolução da rebeldia ácida do punk rock rumo a um estado de espírito mais alienado em seu próprio estilo e regado a doses cavalares de alucinógenos e todas as drogas que houvessem à disposição (!).
Para tal intento, o cerne de “Liquid Sky” é um
disco voador que surge nos céus de Nova Yok –composto com a tosqueira que só o
cinema B é capaz de moldar –dentro do qual um alienígena nutre um plano ainda
mais tosco: Para tal criatura, a substância produzida pelo cérebro humano tem a
mesma qualidade de uma droga poderosa, e ele passa a vigiar o apartamento da
modelo bissexual Margaret (Anne Carlisle, uma personificação andrógina do
conceito heroin chic) em busca de
vítimas das quais ele possa extrair tal substância no instante em que atingem o
clímax, pouco antes de serem mortas –o assim chamado liquid sky.
E nesse sentido, a vida social de Margaret,
flagrada a partir de sua moradia numa cobertura em Manhattan, não somente é, no
mínimo, intensa como também representa uma isca perfeita: Embora tenha uma
namorada relativamente fixa, nas curvas da também andrógina Adrian (Paula E.
Sheppard), Margaret tem parceiros masculinos e femininos a revezarem-se em seus
lençóis a todo instante –e nenhum deles parece ser capaz, ainda assim, de levá-la
a um orgasmo completo!
Outros personagens, todos competindo em
estranheza, comparecem para incrementar as facetas desconcertantes dessa
narrativa: O desiludido casal Paul e Katrine (Stanley Knap e Elaine C. Grove),
ele viciado em heroína; um cientista alemão (Otto Von Wernherr) no encalço do
ser alienígena, que o vigia de longe (assim como aos demais personagens)
durante boa parte da metragem do filme; a vizinha Sylvia (Susan Doukas) em cuja
casa esse mesmo cientista fica de campana, enquanto ela se incumbe de tentar
seduzi-lo (?!); e o filho dela e modelo Jimmy, uma espécie de rival de Margaret
que alimenta por ela um desprezo competitivo que pode muito bem ser (ou não)
amor não-correspondido, e que, numa manobra extremamente curiosa, vem a ser
interpretado, também ele, por Anne Carlisle (acredito que foi inspirada daqui a
ideia do filme “Garotas Modernas” em colocar um mesmo intérprete vivenciando dois
personagens de índoles e comportamentos distintos, quase opostos). Em “Liquid
Sky”, no entanto, esse artifício faz muito mais sentido: Não apenas Margaret e
Jimmy são nêmesis assumidos e evidentes um do outro –o que também transforma um
na contraparte do outro –como também interagem e até fazem sexo (!!)
proporcionando um exercício técnico e virtuosístico da parte dos efeitos
especiais e da montagem a presença de ambos em cena, sendo interpretados pela
mesma pessoa.
Do início ao fim, a narrativa de Slava
Tsukerman alterna momentos e situações envolvendo esses personagens em seus
encontros e desencontros aleatórios, não permitindo que uma cena transcorra sem
que hajam intervenções de outra, simultaneamente. Num instante temos um grupo
dançando num salão e, intercalado a isso, a aproximação do disco voador (cuja
importância no enredo mingua em diversas ocasiões); noutro momento, temos uma
cena de estupro (!), intercalada pela chegada do cientista alemão em solo
americano (!!). Essa montagem inusitada gera uma dúvida no expectador
desprevenido: A sequência que está transcorrendo na tela já acabou ou vai
continuar daqui a alguns segundos? Não apenas isso mas também a trilha sonora a
cargo de Brenda Hutchinson, Clive Smith e do próprio diretor Tsukerman
corrobora para o desconforto do público –um retinido intermitente, estridente e
irregular feito com sintetizadores que não parece fazer sentido algum.
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