sábado, 29 de julho de 2023

Amor Sublime Amor


 Um dos sonhos do diretor Steven Spielberg sempre foi realizar um filme musical –para tanto, ele fez toda a sequência inicial de “Indiana Jones e O Templo da Perdição” –intenção que ele finalmente conseguiu concretizar em 2021, com pompa e circunstância: Refilmando, nada mais nada menos, do que um dos grandes musicais do cinema, único a conquistar a marca de 10 prêmios Oscar, o arrojado e fascinante “Amor Sublime Amor”, de 1961.

Consta que, quando jovem, o primeiro musical com o qual Spielberg teve contato foi o próprio “Amor Sublime Amor”, logo, com sua carreira consolidada como um dos grandes diretores de cinema de todos os tempos, Spielberg agora quer, pelo que se nota em seus projetos, buscar a gênese do fascínio em seu passado, e que moldou quem ele é hoje. Ele compartilha, em “Amor Sublime Amor”, de uma memória afetiva irreprimível pelo filme original –do qual o roteiro de Tony Kushner transfigura pequenos elementos se aproximando mais da peça original de Arthur Larents, Leonard Bernstein e Stephen Sondheim que do filme de Jerome Robbins e Robert Wise –o que curiosamente enfatiza a extraordinária atualidade ainda presente na obra acerca de seus temas sobre intolerância.

1957. O lado oeste de Manhattan, em Nova York, é assolado por uma periclitante guerra de gangues juvenis alimentada pelo ódio: De um lado, o grupo predominante, os Jets –liderados pelo irascível Riff (Mike Faist) –busca impor seu território temerosos de que sejam sobrepujados pela chegada dos Sharks –liderados pelo arredio Bernardo (David Alvarez) –gangue composta pelos imigrantes porto-riquenhos. No contorno hábil que, vez ou outra, o cinema consegue fazer da violência gratuita e descartável, o embate entre os Jets e os Sharks é registrado em forma de dança –a coreografia de Justin Peck, ao capturar a ideia central brilhantemente executada no filme de 1961, converte a violência numa sucessão bela e contagiante de movimentos corporais.

Contudo, “Amor Sublime Amor” não é a história dos Jets e dos Sharks, ele é a história de Tony (o ótimo Ansel Elgort) e de Maria (a fenomenal Rachel Zegler). Ele, descendente de italianos e, portanto, ex-membro dos Jets (dos quais se afastou após um período na cadeia); ela, descendentes de porto-riquenhos –e, para piorar as coisas, irmã mais nova do próprio Bernardo! Num baile promovido para tentar uma vã e mal-fadada conciliação entre os grupos, Tony e Maria se conhecem, e são assaltados por um amor incontornável e cinematográfico que irá definir seu destino até o final do longa-metragem.

Não há qualquer dúvida a respeito da inspiração desta obra em “Romeu & Julieta”, de William Shakespeare, e diferente das tendências dramaticamente redundantes do cinema (e do entretenimento) atual, o filme não busca amenizar o teor de tragédia inerente à obra do bardo: O filme de Spielberg brilha com música, coreografia e beleza visual, contamina o expectador com seu apreço transbordante pelo deslumbre do cinema inocente à moda antiga, e expressa um romantismo que Spielberg sempre buscou esconder, mas, ele não evita os percalços lamentáveis e as tristezas indeléveis quando a incapacidade de aceitar seus semelhantes leva alguns dos personagens principais a enveredar pelo caminho do trágico. Bernardo não é capaz de aceitar a união entre Tony e Maria, e tudo que ele enxerga é a necessidade de tomar o território dos Jets por meio da força, mesmo contra os esforços conciliatórios de sua compreensiva esposa, Anita (a maravilhosa Ariane DeBose, como Rita Moreno antes dela, vencedora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante). Tudo culmina num encontro entre Jets e Sharks num depósito de sal onde as richas supostamente seriam resolvidas em definitivo.

Munido das intenções nobres de colocar um ponto final nas animosidades, Tony tenta um diálogo com Bernardo, mas, tal e qual Romeu em seu esforço para apaziguar-se com Teobaldo, só consegue a morte de Mercúcio –ali se inicia a ciranda de tragédias imprevistas que farão sombria a jornada dos personagens até o final: Numa sucessão de entraves súbitos, Bernardo esfaqueia e mata Riff, enquanto que Tony, levado pelo calor do momento, esfaqueia e mata Bernardo.

Embora o amor leve Maria a perdoar Tony –e mais tarde, até mesmo Anita a perdoá-lo também –as engrenagens trágicas continuam a se mover: Tony planeja partir de Nova York junto a Maria para sempre, no entanto, quando esta tenta enviar-lhe uma mensagem por meio de Anita, ela acaba quase estuprada no reduto dos Jets, o que a leva, indignada, a mentir que Maria morreu. Transtornado, Tony acaba perseguindo Chino (Josh Andres Rivera) de posse de uma arma de fogo, e da promessa de vingar Bernardo com sangue.

Os tons trágicos e dramáticos presentes na narrativa de “Amor Sublime Amor” se acentuam na parte final e, diferente do que o cinema comercial tem acostumado o público nas últimas décadas, essa marcha segue implacável até o desfecho.

Expectadores familiarizados com o filme de Jerome Robbins e Robert Wise perceberão uma similaridade poderosa entre as duas obras. A repaginação de Spielberg prefere se ocupar de pequenos detalhes e intensificar os aspectos onde o cinema evoluiu exponencialmente –como a direção de fotografia (de Janus Kaminski) de um esplendor irradiante –para oferecer um espetáculo sobre humanismo e amor e um discurso de oposição à intolerância sem igual no cinema de hoje.

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